Continuação…
Luiz de Miranda Corrêa na Academia1
Com alegria dou as boas-vindas a Luiz de Miranda Corrêa a esta Casa. Saúdo o escritor e os seus livros. Livros escritos em boa prosa, ensaios sobre cultura e história, crônicas sobre a vida, prosa de ficção. Saúdo o escritor que fez dos seus dias um permanente laboratório de experiências, discutindo a Amazônia, virando mundo, conhecendo pessoas e fazendo amigos, provando do açúcar e do sal da existência, distribuindo bom humor e capitalizando sabedoria.
A inteligência de Manaus se rejubila ao tomar ciência de que a Academia o está recebendo nesta noite. Esta Casa que, no caminho do centenário, já exerceu e exerce papel ponderável no processo cultural da Amazônia, sem dúvida se enriquecerá com o concurso da sua sensibilidade. Esta Academia que em seus quadros já contou e conta, com figuras da maior expressão das letras nacionais, com raríssimas exceções entre as quais me incluo, completa-se ao recebê-lo hoje, na Cadeira n.o 37, de que é patrono o grande dramaturgo, jornalista e ensaísta Benjamin Lima. Guarda o nome do avô, o engenheiro e empresário paraense fundador da Cervejaria Miranda Corrêa, uma das marcas mais assíduas e profundas na história econômica e social da Região. Considera-se um amazônida de quatro costados. Sua família possui raízes no Amazonas e no Pará. Mas em Manaus foi onde Luiz de Miranda Corrêa sedimentou a sua personalidade. Ama tanto a sua terra que jamais a abandonou. Um dia ele me disse que não podia ficar muito tempo sem ir ao Rio de Janeiro, a Nova York e Paris, mas para morar era Manaus, a cidade onde nasceu e onde fez o curso primário, numa escola particular, e, o secundário, no Colégio Dom Bosco, na época em que este era um dos mais disputados centros de formação intelectual e profissional da juventude amazonense. Depois foi para o Rio de Janeiro, onde fez o Científico no Colégio Internato São José. Sua formação mental e humana, nos domínios das atividades escolares, concluiu-se com o curso de História da Arte e Civilização, realizado em três anos no Museu do Louvre, em Paris.
Levado pelas mãos do mestre Arthur Cézar Ferreira Reis, este, também, um dos luminares desta Casa, exerceu funções técnicas na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA, e, depois, na criação e instalação do Departamento de Turismo e Promoção do Estado. Mais tarde foi Superintendente da Fundação Cultural do Amazonas, Conselheiro e Presidente do Conselho Estadual de Cultura, Secretário Geral do Instituto Superior de Estudos da Amazônia – ISEA e do Conselho Consultivo de Cultura. Em todas essas funções, Luiz de Miranda Corrêa tem-se havido com o mais ágil desempenho, face à facilidade com que circula nas altas esferas da administração pública e nos centros internacionais de cultura da mais alta expressão.
Seu espírito inquieto o levou a outras atividades além da literatura. Entrou no mundo do cinema. Entre os seus filmes destaca-se A Selva, realizado em 1970, sobre um dos Clássicos da Amazônia, o romance de Ferreira de Castro com o mesmo nome. Realizou Como Matar uma Sogra, de 1979, tirado de uma novela de Aluísio Azevedo, O livro de uma sogra, autor fundamental do período Naturalista. Em 1979, realizou os curtas A saga de Manaus e Região, Tradição e Modernidade, contando com a participação de Gilberto Freire. Realizou, ainda, como co-produtor, Amazonas, Amazonas, dirigido por Glauber Rocha. Produziu peças de teatro montadas no Teatro Galeria do Rio de Janeiro.
Tem militado na imprensa, colaborando nos jornais de Manaus, de Belém, de Porto Alegre e do Rio de Janeiro.
Seus livros cuidam da análise, da discussão, do debate sobre temas da atualidade e da história. Em Manaus – Aspectos de sua Arquitetura, de 1964 e O Nascimento de uma cidade, de 1966, Luiz de Miranda Corrêa examina a forma como os mestres portugueses lograram implantar, nos trópicos, os estilos de moradia concebidos na Península Ibérica. Em verdade, observa esses aspectos das formas de vida na Amazônia em várias oportunidades, fazendo palestras, concedendo entrevistas ou em simples conversas entre amigos. Discorre na apreciação dessa arquitetura. Dos prédios residenciais do centro histórico de Manaus, servidos por soberbas platibandas guardadas com caprichosos ornamentos, sempre originais, fugindo à monotonia das repetições. As paredes frontais destas casas nascem do fio do passeio, direto da rua, com as portas abrindo de frente para as calçadas. Arquitetura que, enfim, domina a paisagem urbana de todo o mundo ocidental. Luiz de Miranda Corrêa chama a atenção para o fato dos mestres portugueses darem valor essencial ao pé-direito alto, servido por olhos na altura dos forros, e ao porão, com que as moradias enfim se liberavam do excesso de calor e umidade, marca registrada do clima da Amazônia. Modernamente, este problema foi resolvido com os sistemas de ar-condicionado.
Em A Borracha do Amazonas e a Segunda Guerra Mundial, de 1967, Luiz de Miranda Corrêa traça um roteiro seguro, feito com muita lucidez, num panorama completo dos acontecimentos. Os olhos do mundo sempre estiveram voltados para o valor da hévea, desde a divulgação feita em Paris por La Condamine, em 1743, a que batizou com o nome de caucho ou resina elástica. Com a Segunda Guerra Mundial, no entanto, a questão mais se acentuou porque as outras áreas fornecedoras do produto no mundo estavam sob o domínio do outro lado. A questão da borracha acentuou, cada vez mais, a cobiça do mundo desenvolvido sobre a Região.
É oportuno lembrar que, além das questões da borracha, após o término da guerra, com a vitória dos Aliados, voltou-se a discutir a ideia antiga da organização de um instituto voltado aos estudos da Região. Foi quando se propôs, avalizada pela UNESCO, a criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica. Mas o povo brasileiro não aceitou o projeto. Achou que aquilo era uma intromissão em nosso território, verdadeiro atentado à soberania do país. Mobilizou o Congresso Nacional, a imprensa, os órgãos representativos da sociedade civil, e fez abortar a ideia. Sem ter outra saída, o Presidente Getúlio Vargas aproveitou para criar o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia – Inpa, isto em 1952, que hoje funciona em pleno sucesso, como uma das principais referências mundiais nos estudos amazônicos.
No Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade de Manaus, de 1969, Luiz de Miranda Corrêa põe a serviço a sua experiência de cultor da história, mas, também, por ser um roteiro sentimental, retoma a força de sua alma de poeta. No seguinte trecho, recolhido às páginas 16, logo na entrada do livro, portanto, faz uma síntese maravilhosa do seu intento. Diz ele:
Qual o papel maior que Manaus desempenhará no futuro do Brasil? O que significará no contexto do desenvolvimento brasileiro a contribuição de uma comunidade que, através dos anos, vem teimando em ser brasileira? Essa é a grande preocupação dos homens de governo e dos empresários de nossa terra, que não nos cabe responder no presente Guia. O que desejamos é transmitir aos brasileiros dos mais diferentes Brasis, um pouco da história e dos costumes de uma estranha cidade tropical em que o Brasil português se encontra com o Brasil ameríndio e absorve influências plurinacionais, criando uma vivência tropical, de mil facetas às vezes conflitantes, mas guardando as tradições e certos costumes milenares dos indígenas, casando-as com os hábitos e costumes luso-brasileiros, que o nordestino trouxe em sua bagagem de bandeirante afoito, em busca de fortuna nos seringais do Purus ou do Madeira.
Mas Luiz de Miranda Corrêa se estende numa análise mais ampla ao longo do livro. Fala das águas e da floresta, fala da conquista do Amazonas, atem-se na figura de Lobo D’Almada, o grande estadista da Colônia, vai do Império aos dias da borracha. Ocupa-se de Eduardo Ribeiro, exemplo de audácia e engenho de um autêntico desbravador. Tece considerações autorizadas sobre as casas construídas pelas famílias bafejadas com a riqueza da borracha. Refere-se ao Teatro Amazonas, sua história e seus mitos e cuida de outros prédios importantes na arquitetura da cidade. Este é, sem dúvida, o seu livro mais completo sobre Manaus. Faz um largo bosquejo sobre a paisagem urbana da cidade, com a nova arquitetura propiciada pela ação do governo e da iniciativa privada, muito produto da prancheta de arquitetos da linhagem de um Severiano Porto. Mas não se pode esquecer do capítulo sobre a cozinha amazonense, uma das mais suculentas e típicas, brilhando na linha de frente a saborosa tartarugada, que, também, não esqueceu Luiz de Miranda Corrêa.
A súmula do seu pensamento, no entanto, está no livro Em nome de Deus em nome do rei, lançado em 2002, onde analisa a influência portuguesa nas origens de nossa formação cultural. Para tanto levanta os fundamentos da história de Portugal e a sua ação expansionista, eternizada por Camões sobre […] as memórias gloriosas/ daqueles reis que foram dilatando/a Fé o Império […] e levando sua língua a ser falada nas quatro partes do mundo, numa síntese magistral, em estilo fluente e simples, quase coloquial, uma das características, enfim, do seu modo de escrever. Encerra o livro traçando um amplo perfil do Marquês de Pombal e ação da sua política na Amazônia. Onde está a originalidade da abordagem se tantos pensadores daquém e dalém mar já se ocuparam do assunto? Está no poder de síntese só possível em mãos de quem domine a matéria examinada, assumida pela vivência e pelo conhecimento.
Por mais que não pareça, ao avaliar as contradições que marcam os atos e as atitudes dos homens, as personalidades guardam um ponto de coerência no ritmo e no modo de caminhar. Algum íntimo impulso talvez tenha mobilizado o jovem Luiz de Miranda Corrêa, a realizar o curso de História da Arte e Civilização, no Museu do Louvre, em Paris. Seria o ambiente em que viveu em Manaus, na casa do seu avô, misto de empresário e artista, pois tocava piano e compunha, e realizava periódicos encontros de boa música em sua casa, mantendo um salão que era verdadeira sala de concertos? Quem sabe! Mas o certo é que Luiz de Miranda Corrêa permaneceu caminhando pelas estradas escolhidas no mundo do saber, a história da Arte e Civilização. Arte e civilização amazônicas, tema de todos os seus livros.
Há, no entanto, um pormenor destoante, porque ninguém é assim tão perfeito na vida. Luiz de Miranda Corrêa comete um grave deslize. Mantém guardados, longe da luz da publicidade, os contos que escreveu e escreve, nos quais logra imantar muito da sua sensibilidade ao focalizar o comportamento da sociedade do seu tempo. Como sei disso, se os contos estão inéditos? É que o nosso companheiro de Clube da Madrugada Arthur Engrácio, de saudosa memória, pesquisando nos jornais, conseguiu ter acesso a um desses trabalhos, intitulado O kyrie de Itaporanga, incluindo-o na sua excelente Antologia do Novo Conto Amazonense, de 1971, verdadeira raridade bibliográfica.
Luiz de Miranda Corrêa está em dívida ainda com os seus leitores, em relação às páginas de memórias reunidas nos livros inéditos Viramundos e 31, Rue de La Harpe, já anunciados, em cujas páginas, sem dúvida, deverá registrar observações sobre as inúmeras viagens que fez pelo Brasil, pelas Américas, Europa e África, na maioria das vezes por conta própria, e noutras a serviço da cultura nacional. Pelos bons serviços prestados, nessas áreas, recebeu inúmeras honrarias, destacando-se a Medalha Lauro Muller, do Ministério das Relações Exteriores, e a Grã-Cruz de Cavalheiro da Ordem do Mérito Estado do Amazonas.
Mas, apreciemos uma sequência da sua prosa de ficção:
Pouco a pouco a canoa se aproximava do barranco escarpado, apresentando sinais de seca das grandes. A lama grossa anunciava arraias e os garotos evitavam o lodaçal com respeito. Encarapitada no alto da margem, Itaporanga acordava para mais um dia sem futuro, e o padre alemão chegava ao fim da missa de finados e se preparava para entoar o Libera-me. A igreja grande e inteiramente de mau gosto, cheia de painéis mal pintados evocando uma história de burgo sem passado, recebia naquela manhã a fina flor da sociedade, da política, e do comércio. Lá estavam o Prefeito, o Comissário, o Juiz Anacleto, Dr. Sidônio Paz orgulhosamente metido em seu terno de linho branco, D. Florzinha vestida meio de freira, a sorrir para o Padre Eterno numa sociedade limitada de devoção e sexo, o Bustamante Feitosa, mulato baiano muito respeitado por ser médico rico estabelecido com a melhor frequência da cidade e até o Boitatá, com sua cara de retardado, fazendo caretas e dizendo palavrões em voz baixa.
Esse é um trecho do conto O Kyrie de Itaporanga. E por aí vai contando o ocorrido, como se vê, tudo dentro de uma solenidade religiosa, onde se encomendava a alma de uma senhora que, por desventura ou engano, tomara veneno de cobra em vez de bicarbonato de sódio. É grande a fuxicaria em torno do infausto acontecimento. Em Itaporanga havia pessoas informadas sobre a vida e a morte de todo o mundo, mais do que sabiam ou sentiam os próprios agentes desses fatos, de tal forma que chegavam a tratar de assuntos sem nenhum fundo de verdade, simplesmente porque nunca aconteceram. Esses assuntos eram enredos criados pelos próprios fuxiqueiros.
Por aí vai tecendo a trama da sua história, ambientada numa autêntica cidade amazônica, numa linguagem e com um vocabulário próprios da região, sem ser, vejam bem, um conto regionalista onde vicejem personagens de fala estropiada. Mas se trata de uma página de legítima literatura amazônica.
Observando no texto citado a existência de palavras como canoa, barranco e expressões como seca das grandes, referindo-se ao movimento das águas dos rios, não me furto em entrar na discussão da existência ou não de uma literatura amazônica ou amazonense. Uns afirmam que não existe literatura amazônica, mas somente literatura brasileira. Ora, mas se temos vários Brasis, verdade insofismável construída pelos sociólogos, porque não é possível a existência também de várias literaturas? Sabemos que a Literatura, além de outras fontes originais, é um fenômeno linguístico e político. Quando falamos em literatura de Língua Portuguesa, ou Francesa, ou Inglesa, estamos olhando o problema do ângulo, do ponto de vista linguístico; quando se fala de Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira, Inglesa ou Americana, Francesa ou Senegalesa, estamos vendo a questão do ponto de vista político. Na medida em que um povo se afirme e vá conquistando a sua identidade cultural, ele vai criando as suas formas de expressão e, entre essas formas de expressão, ele vai também conquistando uma Literatura própria. Neste sentido é que existe ou pode existir uma literatura amazônica, sem que se queira, com esse pensamento, ferir ou sequer arranhar os princípios da unidade nacional deste país continente. E se de todo não se ficar convencido dessa realidade, é só consultar a vasta bibliografia existente sobre a Região, só no âmbito da criação literária, sem referir aos relatos dos viajantes, desde o primeiro quartel de Século XIX, com Henrique João Wilkens e o seu poema A Muhraida, e os sonetos e odes de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, que aclimata os pastores árcades nas margens dos rios e nas curvas dos nossos igarapés.
Senhor Acadêmico Luiz de Miranda Corrêa:
Vós que tendes participado de tantos movimentos de cultura em nossa terra, no Clube da Madrugada, na União Brasileira de Escritores do Amazonas, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, chegou a vez de contarmos com o vosso concurso indispensável na ilustre Casa de Péricles Moraes. Por vossas qualidades de coração e de inteligência, apresento-vos as boas-vindas. A casa é vossa, aqui podeis sentir-se à vontade.
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1 Discurso de recepção de Luiz de Miranda Corrêa, na Academia Amazonense de Letras.
Continua na próxima edição…
*Poeta e ensaísta. Membro da União Brasileira de Escritores do Amazonas da Academia Amazonense de Letras do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
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