Do outro lado da fronteira cultural nos espreita uma amplidão criadora, uma tradição milenar que produziu literatura de rara beleza e complexidade, fábulas de rara crueza, forte e sensível expressão de forças primevas, cuja elegância seduziu homens como o conde Ermanno Stradelli, que veio para a região em 1890.
Foi com este fidalgo, etnógrafo, rico, corajoso, um herói romântico típico da Amazônia, que a lírica dos povos indígenas começou a ser revelada dentro de uma compreensão artística antes que etnográfica. Seus livros, como “Leggenda del Taria”, coleção de contos e narrativas heroicas, ou “La Leggenda del Jurupary”, um belíssimo registro da saga do grande legislador, antecedem Raul Bopp na reinvenção literária do mundo amazônico.
“Leggenda deI Taria”, lembra muito o antigo romance de amor, um gênero literário que crava suas raízes na mais cara tradição literária italiana. As descrições em versos do cenário, os gestos cavalheirescos, a renúncia final dos contendores frente à carnificina, fazem desta saga uma fábula milesiaca do rio Vaupés.
Stradelli encontrou na narrativa fabulosa dos tariana uma linguagem apenas nascida, como é de nascimento o êxtase de Raul Bopp. E não é por pura associação de ideias que Nunes Pereira, em 1966, intitula sua monumental obra de “Moronguetá: um Decameron Indígena”. Sem interferir na redação dos mitos, Nunes Pereira registra um estilo rico, matizado e sem grilhões. Um registro de mitos e comportamentos que para Lévi Strauss “estocam e transmitem informações vitais assim como os circuitos eletrônicos de um computador o fazem”.
Reconhecendo esta autoridade do mito, poetas como Stradelli defendem a primeira realidade da região, realidade maior e mais relevante, pela qual está determinado o próprio destino da Amazônia. Conhecendo isto, estes “segredos profundos, sedutores e envolventes como certos cipós que se cobrem de flores para fingir fragilidade”, como bem escreveu Câmara Cascudo, a respeito de Stradelli, descobrimos que vivemos num mundo onde o mito ainda vive e o relacionamento do homem com a natureza é ainda o mesmo relacionamento dos deuses com a sua criação. Mas hoje os deuses foram banidos para a penitenciária da etnografia, o status ontológico do mundo está traduzido pelo potencial de energia elétrica. O esforço de Stradelli se repetiu nas obras de J. Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim, autores de antologias como “Lendas em Nheengatu e Português” e “Porandubas Amazonenses”. Mas foi somente em 1985 que um primeiro autor totalmente indígena pode responder ao diálogo proposto pelo fidalgo italiano. Trata-se de Luís Lana, cujo nome em dessana é Tolomen-ken-jiri, autordé “Antes o Mundo não Existia”, narração precisa do mito cosmogônico de sua cultura, escrita em português e dessana sob enormes dificuldades em sua aldeia do rio Tikiê, alto rio Negro. Luiz Lana, que nasceu em 1961, filho do chefe de sua tribo, fez o livro preocupado com a preservação da cosmogonia de criação do universo, acabou se tornando o primeiro índio a escrever e ver seu livro publicado em 500 anos de história do Brasil.
“Antes o Mundo não Existia” está traduzido para diversas línguas europeias e estimulou o surgimento de outros escritores indígenas. Um novo mundo a conhecer!
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