Manaus, 30 de junho de 2025

Como morreu o Conde Stradelli

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Eu não sei como o conde Ermanno Stradelli, aos vinte e sete anos de idade, chegou, a Manaus, em julho de 1879, então um pequenino vilarejo de pouco mais de dez mil habitantes perdido no interior dessa vasta floresta tropical, que deixava o ambiente tão úmido ao ponto das roupas mofarem, no interior dos armários.

Acho que naquele tempo a única maneira seria viajar para a Inglaterra ou Portugal, de onde ele poderia tomar um barco para Amazônia. Se viesse pelo sul do Brasil a coisa seria mais fácil, pois o Rio de Janeiro recebia navios de todas as partes do Mundo.

lingure-brasiliana

BELO CARTÃO POSTAL DA LIGURE BRASILIANA

Ainda transcorreriam uns vinte anos, para que a Lígure Italiana estabelecesse a sua linha para Manaus, partindo de Gênova, com os seus belos navios Amazonas e Rei Umberto, escalando em Marselha, Barcelona, Tanger, Lisboa, Ilha da Madeira e Belém do Pará. Ligavam o Mediterrâneo superpovoado, com gente sobrando, a uma região de população rarefeita, mas insalubre, cobrando um menso tributo de vidas, para aqueles que aqui quisessem permanecer.

Essa insalubridade, contudo estava relacionada com o fato do clima equatorial ser propício ao desenvolvimento dos microrganismos oriundos de outras áreas, sendo aqui introduzidos e proliferando facilmente, além de encontrarem populações sem imunidade adquirida, pela falta de contágio prévio, não existindo assim as chamadas doenças tropicais. Daí os milhões de índios que faleceram pela ação das viroses infantis (varicela, parotidite, sarampo, gripe, resfriados), tuberculose, varíola, verminoses, malárias, febre amarela e  cólera. E os exemplos não faltam e, sem medo de errar, podemos citar que o Plamodium vivax, produtor da malária terçã benigna é oriundo da Europa,, por onde se espalhou com as legiões do Império Romano, e o Plasmodium falciparum, da terçã maligna, nos veio da África, com os escravos.

Também não sei o porquê da sua súbita mudança resolvendo trocar a África, de alto interesse colonial, para a Itália, na Líbia, Abissínia e Somália, pelo Brasil. Poderia até adotar a ideia de que teria vindo por influência dos capuchinhos italianos da Propaganda Fide, que estavam tentando catequizar os índios da região, não obtendo o sucesso esperado, pois tiveram de abandonar sucessivamente as suas missões dos rios Madeira,  Purus,  Solimões e finalmente do alto rio Negro, onde a inabilidade do padre Iluminnato Coppi redundou na expulsão da Ordem, daquela região, de onde passaram para Boa Vista. E tudo em torno de uma interpretação errônea, a respeito do culto do Jurupari, a qual Stradelli não endossava. Por isso teve, por não ser intolerante, alguns desafetos dentro do clero da época, como o padre Tastevin, e agora me deparo com o padre Antonio Giacone, da missão salesiana do Rio Negro, no seu livro “Os Tucanos e Outras Tribos do Rio Uaupés”, dedicando um capítulo do mesmo, para contradizer o seu ilustre compatriota, sob o título À Margem de Um Escrito de Stradelli, embora reconheça o esforço dele ao se pintar como os índios, de tomar cuias de carpi entontecedor e de dançar com eles, para melhor senti-los, mas falando apenas o nheengatu, língua que não era do conhecimento de todos.

Stradelli teve na verdade três fases em sua vida na Amazônia.

A primeira estendeu-se por vinte e quatro anos, de 1879 a 1893, dedicada ao estudo da Amazônia e de seus povos, compreendendo oito viagens ao interior do Amazonas, a viagem à Itália, onde completou o seu curso de Direito, em Pisa, voltando pela Venezuela, subindo o Orenoco e entrando, no Brasil, por Cucuí, o que fora proibido a Humboldt, um século antes.

A segunda, por trinta anos, de 1893, quando se tornou cidadão brasileiro, até 1923, o ano da sua internação, no Isolamento do Umirisal, época em que cuidou de exercer a sua nova profissão de advogado. Foi quando escreveu sobre o que havia recolhido em suas viagens e andou de cidade em cidade do interior, talvez escondendo a sua doença, então incurável e da qual existia um grande temor de contágio. Foi neste tempo que fez sua última viagem à Itália (1897) fazendo contatos diversos sobre navegação, imigração e até sobre a possibilidade da instalação de uma fábrica de pneus da Pirelli, em Manaus.

A sua carreira de advogado provisionado, pois não quis reconhecer seu diploma italiano, iniciou-se com a sua designação para Promotor do 2º Distrito Judiciário, em Manaus, em julho de 1895. Ao contrário do que todo mundo fazia, foi transferido para Lábrea, em setembro do mesmo ano, um dos municípios que já apresentavam grande prevalência de hanseníase, onde melhor poderia esconder a sua aparência, ou aonde iria adquiri-la, não o sabemos, pois na pequena população italiana do Amazonas, em 1922, existiam 15 doentes, demonstrando uma alta prevalência.

Dali foi para Canutama, em 1896, onde escreveu Pitiapo e A Lenda dos Tárias. Em 1912, foi nomeado promotor estadual, com exercício, em Tefé, onde exerceu o cargo até 4 de julho de 1923, a data em que foi demitido do cargo, por ser portador de hanseníase, em uma época sem leis de amparo aos portadores desse mal.

E veio a terceira fase de sua vida, a da sua paixão e morte, que ainda durou três anos, de 1923 a 1926, no isolamento do Umirisal, o local de recolhimento dos hansenianos e dos variolosos da cidade de Manaus. Misturados durante as epidemias daquela virose, muito comuns, na região, elas eram extremamente fatais para os hansenianos internados.

Desempregado, doente, não aceito pela sociedade, recebeu uma passagem de seu irmão o padre Alfonso Stradelli, que lhe garantia a volta para a Itália. Edemaciado e com o fácies leonino, foi impedido pelo comandante de embarcar e nem foi aceito nos hotéis de Manaus, que lhe negaram abrigo, sendo internado no Isolamento do Umirisal, situado na entrada da estrada do Bombeamento, entre a Sanave e a fabrica Compensa.

Em 1921, fora transformado em Colônia do Umirisal, abrigando 15 doentes, acrescidos dos 17 existentes nos barracões da linha de Tiro, que haviam sido  queimados. Neste ano já se calculava a existência de mais de 1000 hansenianos em todo o Estado do Amazonas, sendo os maiores focos Manaquiri, Cambixe, Manacapuru, Fonte Boa, o baixo Purus e o Madeira, cerca de cinco vezes mais do que no início do século.

linha-de-tiroISOLAMENTO DA LINHA DE TIRO (1920)

Antes, uma estatística de 1923, publicada no Relatório Dois Anos de Saneamento, revelava a existência de mais de 1000 hansenianos, no Estado, e 460, em Manaus, assim distribuídos, por naturalidade e nacionalidade, onde nos deparamos com um elevado número de italianos, demonstrando a existência da doença entre eles.

TOTAL DE DOENTES – 1923

MANAUS

AMAZONAS                            127

CEARÁ                                        118

PORTUGAL                              34

RIO G. DO NORTE                25

MARANHÃO                           22

PARAÍBA                                   21

PARÁ                                           19

ITÁLIA                                          9

ESPANHA                                    8

PIAUI                                             8

DIVERSOS                                69

barraca

BARRACA DO UMIRISAL

O Diretor do Serviço Sanitário e Chefe do Serviço de Saneamento Rural do Amazonas doutor Samuel Uchoa visitando as instalações da antiga Hospedaria de Emigrantes de Paricatuba, então ocupada por uma Penitenciária, achou o local magnífico para a instalação de uma das novas colônias de isolamento da política preconizada pelo irmão do Presidente da República o doutor Belisário Penna, Ministro da Saúde, adotada em todo o Mundo.

outras-barracas

OUTRAS BARRACAS DO UMIRISAL

Foi então que a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Amazonas, presidida por Alfredo da Mata, secretariada por Fulgêncio Vital e Linhares de Albuquerque, presentes os sócios Samuel Uchôa, Agenor de Magalhães, Brito Pereira, Baptista de Almeida, Aurélio Pinheiro, Adriano Jorge, Araújo Lima, Sylvio Ferreira, Flavio de Castro, Ayres de Almeida, Virgílio Ramos, Ribeiro da Cunha, Jeremias Valverde, Vivaldo Lima, Xavier de Albuquerque e Flávio Rubim, se reuniu. Na sessão de 25 de junho de 1924, iria ser definida se a transferência do Umirisal para Paricatuba poderia infectar a população de Manaus com os dejetos dos doentes. Essa posição fora defendida veentemente pelo doutor Vivaldo Lima, mas teve dura manifestação contrária dos doutores Adriano Jorge, Xavier de Albuquerque, Araújo Lima e outros, sendo aprovada a transferência com um único voto contrário.

Naquele ano, houve a Revolução Tenentista de Manaus, sendo o governador Rego Monteiro e seu genro Turiano Meira, depostos e depois substituídos por um interventor federal, que procedeu a transferência dos detentos alipresos, sendo entregue o prédio, em fevereiro de 1925, ao que seria hoje a Secretaria de Saúde..

Então, Samuel Uchoa comoveu a população de Manaus, organizando uma subscrição popular que angariou em torno de 186 contos de reis, com os quais, em dois anos (1925/1926), conseguindo recuperar a antiga Hospedaria de Imigrantes, que ficou belíssima, prometendo conforto e espaço, para os doentes.

Estando tudo pronto para a mudança tão ansiosamente aguardada pelos doentes, quando o novo governador Efigênio Sales resolveu visitar o local acompanhado do embaixador japones Schichita Tatsuké e de uma grande comitiva, a qual estava adido Silvino Santos, que filmou o evento. A viagem foi feita a bordo do navio Ayapuá, no dia 6 de maio de 1926.

Dela resultou a ideia de que melhor seria transformar o local em uma hospedaria de imigrantes japoneses e poloneses, que entrariam aos milhares, nos próximos anos. Paricatuba foi aumentada e os hansenianos receberiam um novo hospital onde hoje se situa a Estação Naval, o que também não ocorreu, pois foi transformado em Escola Agrícola.

Aproveitando-se da Revolução de 1930, os hansenianos invadiram Paricatuba, que estava sem destinação, e ali ficaram desde então.

E Stradelli? Quase já estávamos sem nos esquecendo dele, ele que foi um esquecido de todos, um brinquedo do destino, um Job italiano abandonado por Deus, no Inferno Verde.

Setenta e quatro anos já eram passados, sendo três dentro da masmorra de madeira e palha do Umirisal, longe de tudo e de todos. Contudo não sabemos do que ele morreu. O mal de Hansen foi apenas um coadjuvante para o desiderato final, um acompanhante de uma pneumonia, de um acidente vascular cerebral, de uma insuficiência renal, em fim, de outra doença que não a aterrorizante e então incurável lepra, que quando pegava, não largava mais, dizia um aforismo da época, mas não matava.

Stradelli foi um mártir do seu idealismo, morreu como morriam umas 30.000 pessoas anualmente, na Amazônia, de beribéri, maus tratos, malária, febre amarela, longe da sua família e de sua terra, para cumprirem o fado das suas vontades. Morreram para nos deixarem o exemplo dos seus ideais.

Oxalá que Stradelli esteja lá no Céu estrelado junto com Ceuci e o Jurupari.

Ele foi enterrado em campa rasa no cemitério da Colônia do Umirisal.

Anos depois, intelectuais de Manaus plantaram uma tosca cruz sobre sua sepultura, o que foi registrado na fotografia abaixo.

sepultura

Essa tosca sepultura e a colônia do Umirisal, com o seu cemitério, não deixaram vestígios, avidamente engolidos pela expansão urbana de Manaus, mas a triste história de Stradelli e a sua contribuição para os estudos dos povos americanos, ainda perdura, entristecendo corações de aquém e além-mar.

BIBLIOGRAFIA    

DOS ANJOS, GERALDO XAVIER – SINTESE HISTÓRICA DAS EX-COLONIAS DE PORTADORES DE HANSENÍASE NO AMAZONAS, BRASIL – CD

LOUREIRO, ANTONIO JOSÉ SOUTO – ASPECTOS GEO-MÉDICOS DA LEPRA NO AMAZONAS – 1968

UCHOA, SAMUEL – A LEPROSARIA DE PARICATUBA – TYP. PALACIO REAL –

CESAR, CAVALCANTI &CIA.- MANAUS – 1926

UCHOA, SAMUEL – DOIS ANOS DE SANEAMENTO – LIVRARIA CLÁSSICA – RUA GUILHERME MOREIRA, 1-2, CANTO DA THEODURETO SOUTO, 9-11 – MANAUS – 1924.

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