Muitos lembram ainda dos tempos de criança, quando fazíamos uma “malcriação” ou desrespeitávamos uma pessoa mais velha e nossa Mãe nos pegava pela orelha e, na frente de todos, nos obrigava a pedir desculpas. Não discuto o acerto do gesto, mas lembro o ritual como uma forma de educação e valorização de respeito devido. Para todos os efeitos, fazia parte da tradição, do protocolo e das relações sociais e familiares. Nem sempre foi assim, tanto é que para quase todos, hoje, parece estranho. Para nós, mais velhos, era real e tinha lá a sua dor e os seus resultados; era parte da tradição inventada para dar cobro aos arroubos da criançada.
“O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – às vezes coisas de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez” (Eric Hobsbawm e Terence Ranger, A Invenção das Tradições, Saraiva de Bolso, 2012, p.11). Nem toda tradição, como nos fala com propriedade o autor, precisa ser antiga, mas pela forma como se apresenta, pelo conjunto dos elementos significantes de sua construção e apresentação, com simplicidade ou pompa, parece antiga e nem se presume que foi talhada para aquele momento.
Os cerimonialistas são craques nisso. Uns passam até tinta cor de ouro velho nos candelabros para dar ao cerimonial um ar retrô. Outros carregam nas cores vermelhas que representam o sangue heroico derramado pela Pátria, carregam nas vestes ou na suntuosidade dos ambientes, nos refletores; na faiança, quando as mesas estão distribuídas pelos salões; na decoração com flores; pela posição estratégica da “mesa diretora” e, nela, a distribuição dos lugares. Sendo esses de grande importância, no Brasil, ganhou foro de obrigatoriedade com a chamada “Lei da Precedência”, que indica o lugar preciso onde devem ficar as autoridades da república, conforme sua importância. Essa lei é draconiana e dá a verdadeira dimensão de cada um, conforme o escalão ou patente. Aqui e acolá, por baixo do pano, pode ocorrer uma quebra de protocolo. Isso lembra um “causo”: os Superintendentes da Zona Franca de Manaus (Terceiro Escalão na hierarquia da República), no tempo da Ditadura e, depois dela, porque o “cachimbo deixou a boca torta”, através dos seus chefes de gabinete, confirmavam a presença em cerimônias, mas exigiam lugar de proeminência, em alguns casos, sendo chamados à mesa antes do Governador. Certa vez o “Chefete” foi puxado pela orelha do palanque das autoridades de primeiro escalão e levado ao palanque onde estavam autoridades de menor quilate: vermelho de vergonha ou raiva, enquanto nós, jornalistas, que cobríamos o evento no sol e na chuva, nos esbaldávamos em risos; foi nossa vingança.
Não fosse a tragédia autoritária que nos encontramos e as ameaças de “troco” sempre esperadas, a posse do Ministro Alexandre de Moraes no Superior Tribunal Eleitoral deu o ar dessas “tradições inventadas”, como coisa de cerimonialista competente ou de alfaiate de ocasião. O frenesi que a antecedeu; o “vai não vai de algumas autoridades”; a posição de lugares dos contedores mais esquentados; os convidados surgidos do túnel do tempo, “mortos-vivos” da república. É impossível não associar à um filme de super-herói, a entrada do Excelentíssimo Senhor Ministro do TSE, em veste talares, atravessando o túnel formado pelos “Dragões da Independência”.
O que parecia não estar previsto, mas, apenas, cogitado vagamente, era a cena do “puxão de orelha”, público, na hora do discurso, com uma plateia de pé, batendo palmas por mais de um minuto. Uma verdadeira eternidade para um “menino malcriado”!
Views: 67