Manaus, 18 de junho de 2025

Quadro Negro

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*Francisco Calheiros

Continuação…

Uma praça sem povo

A correria era geral. Como escreveu Aluízio Azevedo em O Cortiço: “Ninguém se conhecia naquela balbúrdia de loucos”. Uma correria geral. Algumas lojas serviam de refúgio para os perseguidos. A Rua Rui Barbosa, uma praça de guerra. Os vendedores ambulantes eram espancados na frente dos transeuntes. A tropa de choque da Polícia Militar cumpria ordens para retirar das ruas todos os trabalhadores do comércio informal. A banca do professor Paulo Pontes ficava na esquina da Henrique Martins com a Eduardo Ribeiro, que se transformou no símbolo de resistência dos que tiravam dali o sustento de suas famílias. Soube que o professor chegou a ser algemado e jogado no camburão. Um tiro foi dispara- do, e pessoas correm para socorrer um homem em frente à agência dos Correios. A Casa do Estudante Universitário, quase na esquina da Saldanha Marinho, também foi invadida pela polícia, sob o argumento de que ali era um depósito de mercadorias. Os lojistas comemoravam as ações arbitrárias do aparelho repressor do Estado. Nem todos. Sejamos sinceros. Nem todos. Muitos deles alimentavam os vendedores com mercadorias. A Rua Marechal Deodoro também era um campo de guerra. Eram duas marchas. A Polícia Militar com seus escudos e seu pisar austero, ocupando a cada movimento o território inimigo. Avançava pari passo. De outro lado, os ambulantes, cujos escudos eram os suportes de madeiras utilizados como balcão e vitrine. O embate era inevitável. A cavalaria fazia a retaguarda. Pareciam os tanques de Pequim na Praça Celestial. A poucos metros da queda de braço, uma mulher com uma criança de colo coloca-se entre os dois exércitos. O desfecho é impublicável. E várias foram as justificativas dadas pelas autoridades para aquele abuso de poder. A imprensa local acusava o prefeito de estar mandando bater em camelô. Mas uma pergunta precisava ser refeita: quem manda mesmo na Polícia Militar?

Gabriel, sobrinho do professor Paulo, era a própria cara do desespero. A volta à humilde casinha foi melancólica. Os seus anos de economia foram levados pela Guarda Municipal. O rapa, assim era popularmente conhecida a Guarda Municipal, era um dos braços da repressão. Aquele trabalhador sofria nos braços da mulher e do filho, portador de hidrocefalia. Com muita dificuldade, o tratamento estava sendo realizado. A promessa do pai era uma bicicleta. Mas o seu armário de mercadoria foi jogado no caminhão da prefeitura. Vários armários tiveram o mesmo destino. Não sabia como pagar ao fornecedor do Beco do Comércio. 0 ombro da esposa foi seu porto seguro. Feliz aquele que tem em quem se encostar. Já tive minha velha mãe. Júlia foi um engano. Hoje tenho a maior de todas as minhas necessidades: ser julgado. Mais uma vez o decano magistrado adiou a tão esperada sentença. O motivo foi o acúmulo de processos. De tudo, minha querida filha, restam muitas lacunas preenchidas por erros que se sucederam ao longo dos anos.

A esposa. O filho enfermo. A bicicleta. Os sonhos. As promessas. A incapacidade. O rapa. A paisagem da Marechal era coisa de terror. Em cada um dos sete postes um homem pendurado. O porquê daquele enforcamento coletivo nunca foi revelado. Os vendedores ambulantes não podiam escolher um protesto mais bizarro. Os cadáveres pendurados foram lavados pela triste chuva que caiu antes do amanhecer. O esgoto de acesso à Rua Floriano Peixoto era o canal por que escoava o sangue daqueles trabalhadores do comércio informal rumo ao antigo Hotel Amazonas. A cena lembrava o filme Ben-Hur, onde o sangue de Cristo, que escorria da cruz, curou a leprosa dentro de uma caverna.

Gabriel não era um anjo. Era um pai de família agora desempregado. O que é o desemprego? Para um pai responsável, é um pré-suicídio. Muito mais do que um simples desespero. O choro daquele homem era verdadeiro. Não houve presente. O rapa. Os armários com os relógios contrabandeados da Coreia sendo colocados no camburão da polícia. Manaus com tudo aquilo da automutilação. De um protesto inútil. Entrando no mundo de Rui Barbosa e com a devida licença de Miguel Reale, o Estado, quando quer, normatiza; do contrário, penaliza.

Era inevitável não culpar o prefeito.

Quem manda, afinal de contas, na Polícia Militar? Não é o governador do Estado? Os famintos guarda-municipais não tinham mecanismo suficiente para realizar todas aquelas arbitrariedades. Mas era inevitável não culpar o prefeito.

O dia amanheceu chuvoso. Os periódicos matutinos estampavam quase a mesma manchete. Os sete postes. Os homens ali pendurados. Os protestos de uma categoria que nunca soube o que é contribuição previdenciária, que faz da informalidade sua condição de microempresário. O cambista da José Paranaguá com a Dr. Moreira não conseguia conter o choro. Um deles era seu irmão. Havia mais de quinze anos que o Zé do Chafariz ocupava aquele espaço. No chafariz ele se banhava e fazia suas necessidades básicas. O Zé do Chafariz.

O prefeito estava sendo crucificado. Os editoriais chamavam-no de Hitler e ilustravam a matéria com o símbolo do Nazismo. Em visita a um canteiro de obras, na Avenida Brasil, no Bairro da Compensa, o prefeito foi recebido aos gritos de ditador. Os historiadores ainda precisam fazer justiça àquele homem. Não acredito que ele tenha mandado bater em camelô. A Polícia Militar não se submete ao prefeito. E, ainda que o fosse, não teria esse direito.

Os amigos do Bar da Francisca, acompanhados de Paulo, rumaram em direção ao Parque das Laranjeiras. Era alta hora da madrugada. Muito movimento. Um entra e sai de carros importados. Movimentadas eram as noites de Manaus. Naquela “Casa dos Petiscos”, bem próxima à residência do comandante Douglas, muitos desembargadores marcavam encontros com prostitutas de luxo. Só podiam ser de luxo. Havia verba para isso. O Judiciário nunca teve que prestar contas das suas despesas. A ação foi espetacular. Paulo conhecia em detalhes toda a residência. Auxiliava Ernandes nas missões que lhe eram atribuídas pela máfia.

O porteiro foi amarrado na guarita, que foi fechada. Os demais seguranças foram vítimas da mesma droga que as garotas de programas da Rua Itamaracá davam para seus clientes. A irmã de Paulo, Gioconda, espécie de prostituta- -mor e amante de um dos seguranças da casa, traiu o amado. Pareciam cães devorando um pedaço de carne. Sempre as mulheres, filha, sempre as mulheres. Um sono profundo. Foi dito e certo. Em trinta minutos, a residência, comprada de um deputado e construída com dinheiro de obras superfaturadas, estava nas mãos do pessoal do Bar da Francisca. Um aparente depósito, no subsolo, com um farto estoque de bebidas importadas, inclusive vinho do Porto, levou-os, por uma falsa porta, a uma sala, digamos assim, secreta. Coisa de espantar. Muito dinheiro. Aquilo mais parecia a Casa da Moeda. Finalmente, achamos onde estava depositado o dinheiro do povo do Amazonas. Isso mesmo. Achamos. De alguma forma eu também estava ali representado.

Aquelas pastas eram comprometedoras. Levaram todas. A magistratura estava enlutada. O promotor Francisco teve acesso a elas. A turma do Bar da Francisca queria saber dele o que fazer com aqueles papéis. E eram muitos. A Polícia Federal fez o melhor uso daquele material. E graças ao promotor. Digo. Meu irmão. Estranho chamá-lo de irmão.

O Judiciário é justo. Não vamos misturar instituição com pessoas, conquanto o Direito não exista sem sociedade. A sociedade corrompe. Quem disse mesmo isso? Não sei. Fiquei, entretanto, orgulhoso do meu irmão, que convenceu meus colegas de trabalho a não fazerem justiça com as próprias mãos. O País precisa de um voto de confiança. E assim se fez. As denúncias desencadearam a Operação São João Batista. Foi bonito ver juízes e desembargadores sendo algemados. Se um dia o legislativo acabar com esse ritual, estará de alguma forma protegendo esses ratos. Algema. Cara limpa. A sociedade precisa saber quem são os seus algozes.

A multidão aplaudia. Muitos advogados ficaram com a alma lavada. A mesma petição. O mesmo pedido. O mesmo amparo legal. Sentenças diferentes. São os favores. A deusa vendada tirou o vestido. Ficou nua. Magra. Feia. Só pele e osso. Cena africana. Só lamento não ter estado presente. Se leres estes manuscritos, verás, entretanto, que a maior de todas as condenações não é a vergonha, não é esconder o rosto para não ter a identidade estampada nas manchetes dos jornais. A maior de todas as condenações é a que me está sendo imputada: a longa espera por uma sentença. Sempre em face do acúmulo de serviço. Maldita prerrogativa.

E mais aplausos. No mesmo interim, uma forte chuva sacudia a cidade. Aliás, uma procela. Coisa de filmes norte-americanos sobre vendavais. Parecia ruir o prédio projetado por Severiano Mário Porto. Abandonado havia anos. Obra inacabada. Resíduos fecais escorriam a céu aberto. O fedor era insuportável, só não maior do que aquele cheiro podre de autoridades presas pela Polícia Federal. A imprensa deu grande cobertura para o caso. O apresentador do Jornal Nacional quase teve um colapso. Como se fosse um protesto da natureza, um monte de fezes, em frente ao Tribunal de Justiça, chamou a atenção. Vários operadores do Direito apedrejavam os resíduos fecais contra a deusa da justiça esculpida em bronze no frontispício daquele edifício. A imagem, com a força do vento, virou de cabeça para baixo. Tudo muito triste para um País que precisa consolidar seu Judiciário.

Os suicidas da Marechal Deodoro foram enterrados na parte baixa do Cemitério Parque Tarumã, onde são jogados os pobres. Muita lama. Muito choro. Muito comércio informal e aproveitadores de última hora. Um campo de cruzes dominou a cena entre a Avenida Sete de Setembro e o prédio da Receita Federal. A sucessão estadual já dominava o cenário político. Sempre foi assim. Nada de obras. Nada de projetos. O mesmo sentimento de perpetuação do poder. O mesmo povo. Um e outro Policarpo Quaresma. O promotor Francisco poderia ser muito bem esse personagem saído do livro de Lima Barreto.

Carol entregou-me aquela carta. Eu a li de um só impulso respiratório. Pediu que usasse minhas prerrogativas intelectuais. Não havia outro jeito. Deveria entregar-me. Seria melhor. Não falava como irmão. Errei. Envolver-me com o narcotráfico não foi o caminho correto para ajudar o sindicalismo. O Bar da Francisca. Enfim, demonstrou saber detalhes do meu passado de crimes e de sala de aula, que, na minha avaliação, sempre foi o maior de todos os crimes. E assim o fiz. E aqui estou para ser submetido ao Código Penal. Durou mais de uma semana a retirada dos entulhos em que se transformou aquele tribunal. A deusa vendada foi conduzida por uma das caçambas da limpeza pública.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

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