
*Mario Ypiranga Monteiro
A Função dos Grupos Humanos
Disse uma vez Joaquim Nabuco que nada na conquista de Portugal é mais extraordinário do que a conquista do Amazonas.1 De fato, em todo o trabalho pertinaz levado a efeito pelo reinol no mundo inteiro, sobressai a conquista e ocupação da Amazônia como um dos mais característicos experimentos da empresa sustentada pelo espírito do soldado, do marinheiro ou do diplomata português. É desse audacioso espírito de conquista que sobrevêm a luta persistente pela posse e domínio da região amazonense, luta sustentada com sacrifício, mas sem recuos. Podemos assegurar que data de 1624 a preocupação mais larga pelas regiões do setentrião, ínsitas no domínio da coroa lusa pelo tratado que dividiu o mundo descoberto por Colombo. Com a separação do Brasil em dois governos administrativos por Felipe IV da Espanha, a parte norte, representada pelo governo do Maranhão (incluindo os atuais Estados do Pará e Amazonas), com sede em São Luís, ficou destacado do governo do Brasil. Política do dividir para governar. Só assim poderia ser olhado com otimismo a conquista. Depois desse golpe, veio a criação da Capitania do Cabo do Norte, tornada realidade pela carta régia expedida em 1637 e cujo governo fora dado a Bento Maciel,2 Qual o fim e o objetivo colimados na expedição daquele diploma? Era a conquista, na forma concreta absoluta, mas diplomática; era a unificação dos territórios assegurados pelo meridiano de Tordesilhas. É viável o plano do governo espanhol, muito embora não The ficassem assegurados os domínios dos territórios protegidos, no caso as margens do Amazonas.3 Destarte, na posse plena das duas margens do grande rio, tratou Portugal de fixá-la e garanti-la. Antes, porém, Pedro Teixeira havia subido a formidável caudal, com o apoio na carta régia que criara a Capitania do Cabo do Norte. Foi um dos mais famosos arrancos, émulo daqueles que Francisco de Orellana4 e Pedro de Ursua realizaram, respectiva- mente em 1539 e 1560. Acho que se deve tomar essa viagem de Pedro Teixeira como o ato oficial e oficioso da dilatação da conquista. Ela completaria as duas primeiras, retificando o limite imposto pelo jugo da Espanha. Talvez fosse isso, nada ou pouco resta por provar. Singular é o fato de que Portugal permitisse, dentro da bacia e nos limites do traçado de Tordesilhas, as concessões espanholas. Anos antes, bátavos, ingleses e franceses fixaram-se no estuário do grande rio, ameaçando o domínio português, como se a pretensão fosse fechar a entrada da maior via fluvial do globo. E não era assim, com efeito? Os holandeses, mais atrevidos, levantavam trincheiras, secundados pelos ingleses e franceses, sendo que estes últimos procuravam de preferência a costa corrida de Pernambuco ao Rio de Janeiro e depois dali ao Maranhão,5 a chatinarem com o gentio, embarcando pau-brasil. Mas os portugueses, no afã de levarem a conquista ao ponto do direito estabelecido pela linha demarcatória, não tergiversaram e seguiam-nos de perto, dando-lhes combate, repelindo-os, contra-atacando, defendendo, como podiam, a colônia, sem jamais dispensarem o valioso auxílio das flechas do gentio, conhecedores profundos da região. Poderíamos assinalar fato altamente significativo da conquista e colonização da Amazônia, com a fundação da cidade de Belém7 por Francisco Caldeira de Castelo Branco, em 1616.8 Iniciou-se, daí, o povoamento no sentido da montante, erigindo- se o forte de Gurupá, em substituição a um holandês.9 A costa da região, o litoral amazônico, seria, em 1621, conquistado e colonizado, com a tomada dos fortes holandeses e expugnação de ingleses e franceses, empresa na verdade estafante para uma zona coberta de ilhas e de artérias navegáveis. Mas isto para os portugueses nada sig- nificava, como testemunharia antes Orellana:
Asimismo hago saber à Vuestra Magestad que no se halla ningún marinero castellano que sepa la costa del rio para donde es mi viaje, exceto los portugueses, que tienen gran notícia della por la continua neve- gacion que alli tienen; y asi por esto, como porque navegan en piezas geras y bien aderezadas conviene llevarlos esta jornada.10
Com Pedro Teixeira, portanto, se abre para a região corta- da pelo grande rio as possibilidades de engrandecimento. Porventura o navegador só fizera obra de conquista, subindo a correnteza do Amazonas? O seu nome já estava ligado, como o de muitos outros, a memoráveis fastos portugueses da América.
Fora um daqueles valorosos capitães que defenderam com unhas e dentes a conquista do Maranhão contra as invasões holandesas francesas e inglesas. Tem início a sua brilhante fé de ofício como soldado, em 1616, quando, ainda alferes, rompe a mataria agressiva do litoral estendido entre Belém e São Luís, jornada que, por curta em relação àquela que realizaria em 1637-39, não seria menos periclitante. Diz o historiador Berredo:
Comunicou então por terra a Jeronymo de Albuquerque o ditoso sucesso da sua expedição, de que também deu conta ao Governador Gaspar de Souza, e encarregando a diligência de conduzir as Cartas ao Maranhão com uma escolta de poucos Soldados ao conhecido préstimo do Alferes Pedro Teixeira, desempenhou bem este Oficial a confiança, que fazia delle; porque sabendo no sitio do Cayté, que os muitos Tapuyas seus habitadores aleivosamente lhe dispunham a morte, depois de o salvar de tão fatal perigo a constância do animo, os reduziu todos à obediência da Corda de Portugal; e em nome della tomando logo posse daquelle districto, a continuou até a Cidade de S. Luiz com geral assombro dos seus moradores, por ser elle o primeiro homem, que com notícia sua tinha pizado aquellas terras; e despacha- do cuidadosamente pelo Capitão mór com o socorro de alguma artilharia, munições de guerra, e pagamento para os Soldados (a bordo tudo de huma lancha grande), se restituio à Cidade de Belém do Pará com prospera viagem.11
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1 0 Direito do Brasil, 8, Rio de Janeiro, 1941.
2 A 14 de junho de 1637 outra carta régia assinala “as condições a que ficava sujeita a doação, como marcou os limites das terras compreendidas na sua real munificência”. – Barão de Guajará, História Colonial do Pará, in Revista da Sociedade Estudos Paraenses, 11, 161, Belém, 1896. Vd. também Joaquim Caetano da Silva, L’Oyapoc et l’Amazone: question brésilienne et française, 1, Paris, 1861.
3 É óbvio. A restauração portuguesa, verificada a 1. de dezembro de 1640, eliminou a Espanha da conquista. A não se verificar este fato, de grande importância para a história do Amazonas, uma série interminável de acontecimentos, como bem insinua Joaquim Nabuco, teria precedido a radical conquista da bacia, colocando-nos em situação crítica em face do domínio holandês.
4 Foi autorizado a fazer o descobrimento e “explorar e povoar a margem do sobredito rio do lado esquerdo da boca por onde ides entrar, se ela estiver nos limites da demarcação de sua majestade”, pela capitulação de Valadolid, de 13 de fevereiro de 1544.
5 Vd. Ive d’Evreux. Voyage dans le Nord du Brésil fait durant les années 1613 et 1614, 1864. José Ribeiro do Amaral. Fundação do Maranhão, 1912. 5
6 A eles devemos, conseqüentemente, as primeiras comunicações com a Europa.
7 Vd. Ernesto Cruz, Belém. Aspectos geo-sociais do Municipio, Rio de Janeiro, 1945.
8 Em conseqüência da ocupação do Pará em 1615, depois da expulsão dos franceses de São Luís, em 1614.
9 Arthur Reis, História do Amazonas, 31, Manaus, 1931. Vd. Artur Viana. As fortificações da Amazônia, in Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, IV, Pará, 1905.
10 Joaquim Nabuco, 0 Direito do Brasil, 17, nota 17. Vd. João Lúcio de Azevedo, Estudos de História Paraense, Pará, 1893.
11 Berredo, Anais Históricos do Estado do Maranhão, 1.165-66, 2. edição, Florença, 1905.
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