Manaus, 1 de dezembro de 2023

A Capitania de São José do Rio Negro

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*Mario Ypiranga Monteiro

Continuação…

A Função dos Grupos Humanos

Encontramo-nos neste ponto diante de dois agentes socializadores: a tropa de resgate, tropa de guerra, as missões e o rio. Seriam esses agentes de suma importância no processo histórico da nossa formação política, humana, econômica, social enfim.31 É por essa razão que nos demoramos em explorar-lhe o aspecto na aparência elementar, mas no fundo de grande repercussão histórica, como iremos ver, pela alta contribuição expansionista. Não se segue, do exposto, que a expansão civilizadora portuguesa se deva exclusivamente à tropa de resgate. Não é precisamente essa a tese que queremos defender, mas parte inicialmente dela o critério de alargamento das fronteiras, a ambição imperialista do luso na Amazônia. Associaram-se-lhe outros fatores determinantes, vê-se logo. Mas, nos primeiros anos, ela se evidencia como a principal substância da conquista, porque representava a força possessória. De fato. Abriu novos e mais amplos horizontes, penetrando os mananciais, afugentando o inimigo castelhano, reivindicando direitos possessórios ou abrindo privilégios a ele,32 estudou os usos e costumes das populações bravias der- ramadas pelos acidentes geográficos, rios e altiplanos; situou o indígena em posição correspondente ao branco; levou de arrancada, para além dos limites teóricos de Tordesilhas, a fronteira do Brasil. Tudo isso, porém, não foi feito suasoriamente. Causou anos de lutas, de choques sangrentos de raças, de adaptações, de assimilação, de violências e de massacres terrificos. Segue-lhe, em iguais processos políticos culturais, a dominação espiritual. Só então é que vem a administração, a burocracia, fixar-se, ampliando o domínio estatal.

São esses, evidentemente, os três princípios basilares da conquista. Ainda teremos muito que informar sobre o primeiro e particularmente sobre o domínio espiritual, que é uma das páginas mais vibrantes e mais epopéicas da conquista, nada inferior ao quadro sacrificial exposto pela história da catequese no sul, com os seus santos e os seus rufiões. Partiremos da administração altamente fecunda de Francisco Caldeira de Castelo Branco, pois é ele o autor espiritual do sertanismo que criou a expansão política da Amazônia.33 Esqueçamos a rubra cortina de sangue. Repetirei que o sacrifício de milhares de selvagens plasmou o esplêndido desenvolvimento social da terra. Avançaremos mais: o odioso império da escravidão vermelha serviu de mantença ao colono. Sem o braço trabalhador escravo que o amparasse, estariam destinados ao fracasso todos os ideais de expansionismo, pois o índice demográfico português, insignificante para a época, não podia alimentar, numa paisagem agreste, os recursos humanos suficientes ao sustentáculo da colônia. Falo em braço, e aqui se deve destacar o batalhador indígena, precioso ele- mento com que contaram os lusos na expulsão dos “herejes” em toda a linha da costa que vai do Rio de Janeiro ao Rio de Vicente Pinzón, com especialidade no delta amazônico,34 e estes por sua vez para combater aqueles.

As entradas no sertão das Amazonas faziam-se tomando- se por base o Presépio.35 Depois de fixados os núcleos de Gurupá e Cametá, dali partiam as famigeradas tropas de resgate cujo objetivo único era o índio e a droga, especialmente o primeiro. Nessas entradas, repito, abriam-se novas e duradouras conquistas, porque a cada palmo vencido na direção do oeste, do norte ou do sul, onde as populações selvagens abundavam, dilatava-se efetivamente a conquista. Já frisamos que essa expansão era estimulada pela Espanha, cujos interesses pareciam decisivos na região transandina e para além do divortium aquarium guianense. É esse um aspecto profundo da política de dilação do domínio português na América, que não podemos olvidar jamais. A caça ao índio, conseqüentemente, determinava a conquista do espaço, porque a droga do sertão, arrolada como um dos interesses dos conquistadores, não os compelia à mobilidade, nada obstante os réditos promissores. Essas drogas resumiam-se nos produtos naturais abundantes que o índio coletava mais que plantava:36 cacau, baunilha, canela, cravo, salsaparrilha, raízes, cáscaras amargas, etc. E os artigos de vulto, exportáveis também para Portugal: madeiras preciosas como o campeche, cedro, muirapinima, de que fazia gasto excessivo a indústria naval.37 Somente o ouro não figurava nos objetivos das entradas ao sertão, em virtude, talvez, da dificuldade em trata-lo. Tanto é assim que por diversas vezes o rei expedira ordens contra a exploração das minas, a fim de que os colonos não abandonassem a agricultura já de si minguada.38 Ficaram, portanto, como exploradores do braço humano e das drogas. E todas as arrancadas partidas de Belém, tinham esse objetivo, embora algumas rotuladas graudamente tentassem dissimular o fim. Faremos um estudo especial sobre o critério adotado pelo caçador de escravos: as aldeias eram administradas pelo poder temporal, até que provisões posteriores nelas colocassem a pessoa do sacerdote, a fim de evitar maiores perseguições e desgraças.39 Ainda em 1625 vemos o padre frei Cristóvão de Lisboa lançar processo de excomunhão sobre os moradores de Belém e seus homens bons, por lhe terem sido contrários à política de absorção do poder relativo às aldeias.40 O escândalo que sucedeu ao ato cominatório vem muito bem expresso em Berredo, que publica, in extenso, o documento,41 Aquele sacerdote chegara a Belém no dia 14 de maio de 1625 e apresentara imediatamente ao Senado da Câmara o alvará real, que abolia as mercês das administrações das Aldeias dos Índios, como tirava destes todos os interesses.42 Isto foi o bastante para o povo comover-se em protesto. E aqui que a chicana toma à sua conta o caso, resolvendo-o pelo processo do sofisma:

…fallando, como só fallava, aquele Alvará com a pessoa do General do Estado, que te achava já em Pernambuco, lhe tocava privativamente a sua execução; e formando-se este mesmo assento, se sujeitou a elle o Padre F. Christovão, com razão temeroso das fataes consequencias da sua repugnåncia.43

Por este singular procedimento de um povo arraigada- mente cristão, vê-se como andava acirrada a ambição de cativos na colônia, ao ponto de não permitirem que a administração das aldeias passasse à jurisdição do clero Daí aquela fulminante excomunhão de que falamos. O cioso padre, entretanto, não ficou inativo e subiu o Tocantins a missionar, regressando para expedir a Carta Pastoral, excomungando os renitentes.44 Parece que as tropas de resgate, a esse tempo, já traziam aquele rótulo infamante que as tornou tristemente célebres. Vemos, pois, no governo de Bento Maciel Parente, o uso desabusado do resgate, levado a termo por um filho natural daquela autoridade. Essa tropa de resgate tinha como único fim, consoante o próprio testemunho escrito de Berredo, o resgate de escravos, a fim de satisfazer a insatisfação dos residentes de Belém. Acobertada sob a forma simplista e inocente de ataque e expugnação de huns estrangeiros, que depois da guerra de Pedro Teixeira ainda alimentavão as esperanças de novidades nas visinhanças do Curupá, favorecidos de muitos Índios da obediência daquella Fortaleza, encarregou a expedição a hum filho natural, do seu mesmo nome, e appellidos, que sabindo da Cidade de Belém no fim de Janeiro, assistido do Capitão de Infantaria Pedro da Costa Favela, com as forças de que necessitava desempenhou inteiramente o projeto do pay; porque tratando só de resgatar muitos Tapuyas, fez tapar a boca por algum tempo a huma grande parte dos clamores do povo.45

Que clamores eram aqueles? Ocorre perguntar logo. É fácil de compreender, se voltarmos a atenção para o estado crítico da colônia, onde imperava a escravidão vermelha na sua forma mais desenvolvida, solta, legalizada pelos inúmeros alvarás, leis, etc., e apoiada nas próprias Ordenações. E tanto assim era, e tão grave era o escândalo, que àquele mesmo ano, no primeiro de abril, os padres da Companhia de Jesus recebiam a impugnação da Câmara, ao requerimento para mudarem suas missões. É muito interessante o fato dessa oposição tenaz partir do próprio povo. Interessante e sobretudo explícita. Alegava, pela voz do representante legal, que a cidade já possuía dois conventos, o de Nossa Senhora do Carmo e o de Santo Antônio. A razão, entretanto, era outra, percebe-se logo. Ou a repulsa partia das ordens já estabelecidas, diante do dos Inacianos, ou era o franco resultado da inquietação do povo que via na intromissão dos Jesuítas o controle da escravatura libérrima. Com os sacerdotes esse prejuízo moral social tenderia a ver frustrada uma campanha saneadora. Entretanto que assim decorriam os anos, em 1626 uma tropa de resgate, sob o comando do capitão Pedro Teixeira, assistido pelo padre frei Cristóvão de São José, da ordem de Santo Antônio, deixava Belém rumo ao Tapajós, integra- da por vinte e seis soldados e copioso número de índios. Éramos no governo de Manuel de Sousa de Eça, que substituíra ao capitão-mor Bento Maciel. Essa tropa arrecadou poucos escravos, em virtude da índole dos selvagens daquela região não admitirem a escravidão Outra entrada, em 1627, sob a direção de Pedro da Costa Favela, que se tornaria ao depois famoso no Rio Urubus, rumava para o distrito de Pacajá, no Tocantins. Mascarava essa expedição o argumento irrisório de que se iria reduzir de novo à devoção da Capitania todos aquelles índios, que sabia estavão levantados. Aliás, diz Berredo que os resgates de escravos estavam reservadamente prohibidos pelo governador Francisco Coelho. Daí o desaguisado inevitável que culminou com a prisão do capitão-mor Manuel de Sousa, interferindo nesse ato o filho daquela autoridade, Feliciano Coelho. É aqui que se argumenta fortemente com a lógica da hipocrisia. Os adversários do capitão- mor Manuel de Sousa d’Eça haviam mandado as mais desalentadoras notícias ao Maranhão, acusando este de defender os interesses particulares, apenas, na questão dos resgates de escravos, o que originaria a vinda do filho do governador, a título de visita, com as prerrogativas de chefe de Estado, em 1628. O resultado dessas desavenças já vimos. Mas quem lucraria com elas era o povo de Belém e muito particularmente Feliciano Coelho, que entrou a resgatar, munido da competente provisão. A testa de duas novas entradas ficaram os capitães Pedro Teixeira e Bento Rodrigues de Oliveira. Estes acontecimentos deram como resultado a suspensão, ainda que periódica, do resgate de escravos. Acabaram, afinal, reduzidos parcialmente a dois por ano, com autorização expressa do governador e assistência dos Missionários de Santo Antônio.46 Continuaram, todavia, os resgates e descimentos pelo corpo dos grandes rios e afluentes. Deslocam- se, numa fúria impressionante de conquista. Conquista do braço escravo, que é ao mesmo tempo a da terra. Entramos agora nas raias da futura Capitania de São José do Rio Negro, porque até então as tropas de resgate limitavam as operações ao baixo Amazonas e afluentes principais.

A 22 de junho de 1657 partia de São Luís do Maranhão uma tropa de regate, comandada pelo cabo Bento Maciel Parente. Rumo orienta- de no sertão amazónica. Seguiam-na dois religiosos, os padres Francisco Velozo e Manuel Pires. O notável orador sacro, padre António Vieira, pregou à partida dessa bandeira que aliciara perto de trezentos índios, além dos vinte e cinco soldados da guarnição e dos agregados. Foi essa tropa de resgate a primeira que se fixou, pelo menos durante algum tempo, no terreno boje abrangido pelo Município de Manaus.47

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31 0 célebre Tratado de Tordesilhas, diploma conferido às nações interessadas na conquista do Novo Mundo, em 1494, apenas conferia a Portugal toda a região para leste do estuário do Amazonas. 0 oeste, isto é, o âmago da Amazônia, sem dúvida a parte mais excelente do território brasileiro. caberia à Espanha. Do fato, porém, da unificação das coroas, com Felipe II, os castelhanos ficaram cuidadosamente situados além dos relevos andinos ou quando muito avançaram para as vertentes. O resto, toda a grande bacia, quase dois milhões de quilômetros quadrados de conquistas, estava sob a jurisdição de portugueses, que dela se iam assenhoreando palmo a palmo. A 4 de novembro de 1621, o rei de Portugal e Espanha oficializava a expansão, sem tomar outras providências que garantissem os direitos da coroa. Disto resultou que por ocasião da Restauração portuguesa, em 1640, Portugal estava com o domínio quase completo da bacia. Foi uma manobra de inteligência e de audácia.

32 Vd. Arthur Reis, A Política de Portugal no Vale Amazônico, 24.

33 “A organização estatal na Amazônia começou naturalmente no dia em que desembarcou nas terras marginais ao Guamá o capitão Caldeira de Castelo Branco”. Arthur Reis, Estadistas Portugueses na Amazonia, 27.

32-A Capitania de São José do Rio Negro

34 A história dessas contendas não é de somenos e dilata-se pelos anos a fora, passando das ações de fato às de direito. Mas os portugueses, auxiliados de índios, mantiveram sempre a distância os pretensos conquistadores europeus ou expeliam-nos dos redutos da costa e dos rios internos. Vd. Berredo, op. cit., 1, 207.

35 “Mesquinha povoação, que tinham fundado longe, mais do que cumpria, do oceano, não tinha importância como cidade: era apenas um cais de desembarque e um ponto de partida; mas também

o centro de onde as ambições insaciáveis irradiavam procurando riquezas”. João Lúcio de Azevedo,

Os Jesuítas no Grão Pará, 126, Lisboa, 1901.

36 “Esse estado coletor se resume, naturalmente, na recolha dos produtos fornecidos pela terra, sem que houvesse um processo racional de cultura”. Mário Ypiranga Monteiro, O Estado Social do Índio Brasileiro, 7.

37 Não são poucas as referências documentais sobre o embarque de madeiras de lei, para construção de navios, no reino, e principalmente para vergas e mastros. Fala-se muito, por exemplo, da muirapinima. as vezes cacografada pínima, e essa madeira ia do Rio Negro, remetida pelos padres, mas também de outras regiões da bacia. Para o assunto, os Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, com abundante matéria, constante de ofícios para o reino.

38 Não havia interesse nas jazidas auríferas? Pensamos que sim, mas em virtude da ambição desmedida do colono e dos sertanistas, o precioso metal ficou quase que relegado. Entretanto, as bandeiras oriundas do sul, como a primeira do Anhanguera, atingiram o Xingu, em 1682. Acredito que os réditos foram insignificantes, porque depois o rei ordenava não se distraíssem reservas humanas em procurá-lo, de vez que escasseariam braços para a agricultura. Ou seria, antes, em virtude da capitação?

39 O referido visitador e custódio designado para funcionar junto às autoridades maranhenses, exibiu um alvará real, datado de 15 de março de 1624, “que removia todas as mercês das administrações das Aldeia dos Índios” (Berredo, op. cit., 1, 205), o qual foi ou deveria ter sido cumprido, apesar de ferir interesses contrários da população, tendo para isso empregado os bons ofícios o capitão-mor Antônio Diniz.

40 “Além do lugar de Custódio levava elle o de Comissário do Santo Officio com largos poderes, por especial graça do Inquisidor mor Dom Fernandes Martins Mascarenhas, e o de Visitador Ecclesiastico”, etc. Berredo, op. cit., 1. 205.

41 Op. cit., 1, 215 usque 217.

42 Idem, idem, 208.

43 Idem, idem, idem.

44 Veio tudo a dar em nada. Os homens bons da Câmara de Belém, com a expedição do documento referi- do, submeteram-se humildosos à força rigorista da igreja e do padre, que acabou perdoando a todos, concertando em que se aguardasse a vinda de novo governo. Este santo freire, em viagem depois para a Capitania do Ceará, sendo atacado por noventa selvagens, empunhou bravamente da espada e do escudo, lutando pela vida.

45 Berredo, op. cit., 1, 223.

46É infame a desculpa da Câmara de Belém para justificar a escravização dos índios: “porque já nestes termos a não dilataria, se não quizesse carregar nos seus hombros o formidável pezo de responder diante de ambas as Magestades Divina, e Humana, e pelo embaraço na redução de tantas almas, escravas infelices do paganismo”. Apelar para a desculpa de que aqueles pobres escravos, retidos no cativeiro, alimpavam as almas do pecado com a sujeição ao trabalho forçado, é sumamente ridículo. Aliás a Câmara de Belém só fazia reproduzir as mesmas palavras proferidas pelos responsáveis pela escravidão negra, quando dos descobrimentos marítimos da África. Vd. João Lúcio de Azevedo, Quadro da vida paraense, Revista da Sociedade de Estudos Paraenses, II, 117, Belém, 1896.

47 Mário Ypiranga Monteiro, Fundação de Manaus, 2.ª edição, p. 15, Manaus, 1952 (Nota para esta edição). 48 Essa designação era obrigatória para delimitar a extensão do território, além da junção do Rio Negro.

Continua na próxima edição…

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

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