Manaus, 3 de dezembro de 2023

A Cidade de Manaus – Sua história e seus motins políticos

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*Bertino de Miranda

XIV

Os Cabanos na ofensiva. – Apolinario Maparajuba. – Fuga de Rodrigues de Souza. – O Baixo Amazonas reconhece a Presidência de Eduardo Angelim. – Expedição de Bernardo de Sena a Manáos.

O bloqueio de Tatuóca e no Tocantins vae se apertando cada vez mais. A princípio os Cabanos ocupam uma grande parte da Ilha de Marajó. Apossam- se das margens e dos campos do Arary, os mais férteis na indústria pastoril. E’ d’ali que vem o sustento às centenas de refugiados na esquadrilha e nos acampamentos de Tatuóca. O Tocantins, que é agora o reduto mais forte da Legalidade, consome, de seu lado, muita matalotagem. Expulsos do Arary e de toda a costa inferior da Ilha, os Cabanos prosseguem na subida. Em Macapá são repelidos em toda a linha. Embarafustam então pelo curso principal do rio, saem nesse labirinto intrincavel de ilhotas de Gurupá e tomam, já sem susto, o rumo do Icuipiranga. Aqui encontram, com certeza, os destroços das razias de Bararuá. Reanimam outra vez os ânimos abatidos e procuram reunir aqueles que se homisiam pelo interior. Ou por medo, ou, o que é mais conforme á verdade, pela simpatia, desde que passam de Gurupá, avolumam-se consideravelmente. São já milhares de homens a que apenas falta um chefe que saiba manter entre eles a coesão e a disciplina. Esse chefe se chama Apolinario Maparajuba. Algumas vezes se assigna também Pureza e Firmeza.

E’ o gosto da época. Angelim, uma das madeiras mais rijas do vale do Amazonas, é o sobrenome que Eduardo adopta para significar que, nos seus atos e nas suas opiniões políticas, é um inflexível. Outros preferem nomes de tribos de índios ou dos personagens mais celebres da história colonial americana. Maparajuba é um tanto seco de maneiras e difere, por um traço curioso, dos demais Chefes dos rebeldes. Todas as suas arengas são escritas n’um estilo sóbrio e não se perdem muito na vacuidade e no superficialismo declamatório. Pede as cousas com bons modos e sem deixar perceber que as exige. O loco-tenente de Maparajuba é Bernardo de Sena, que Cordeiro havia remetido em ferros para Belém. Em Icuipiranga é solto, ou os guardas que o conduziam, seduzidos pela sua eloquência, fraternizam com os rebeldes. Só ele tem sob suas ordens 1800 homens. Querem aclamá-lo chefe, mas prefere dirigir a expedição do Alto Amazonas. Tem talvez de ajustar as suas contas com Henrique Cordeiro (Mem. Sena in Act. extr. de 8 de março cit). E’ um velho conhecimento no Icuipiranga. Viera a Manáos, como já vimos, reconhecer primeiro o terreno. Tem já os seus créditos em boa conta entre os eduardistas.

Santarém, mesmo que quisesse, não poderia resistir por mais tempo. Sanches de Brito não é ainda uma força concêntrica; domina apenas n’uma raia mui restrita. Bararoá descansa no Rio Negro das fadigas da primeira expedição. O bloco do legalismo não tem mais, por isso, a consistência de outrora. Monte Alegre se ascende; o Partido que se inclina para os rebeldes se torna até o mais forte. Pouco depois, reconhecem Eduardo Angelim como Presidente, matam os Portugueses adoptivos da vila e saqueiam as suas casas (Motins Políticos cit. V-224).

Maparajuba procede, porém, com muita habilidade. Vae apertando o cerco; corta todas as comunicações; dificulta, enfim, a vida; quer obrigar pela fome e pelo medo a capitulação de Santarém. A fuga de Rodrigues de Souza, que sabia quanto ódio The votam os Cabanos, decide os Moradores a pedirem um armistício. Com aquela fuga perdiam o apoio principal; si é exato o que se lê numa das Actas da Câmara, ele abandona os seus jurisdicionados «com quase todas as forças e munições» (ibid. 484). A verdade está num meio termo justo. Só alguns cidadãos acompanham Rodrigues de Souza numa escuna. Por um triz não caem nas garras dos facciosos de Monte Alegre. A muito trabalho, depois de tocarem em Gurupá e Macapá, avistam, com imenso jubilo, a Ilha de Tatuóca (ibid. 225).

A resposta de Icuipiranga não admite tergiversações. E’ lacônica e terrível. Os santarenos têm de se render e reconhecer Eduardo Angelim Presidente, sob pena de correr muito sangue (ibid. 486). Submetem-se e oficiam ás Camarás de Monte Alegre e Óbidos insinuando o mesmo alvitre. As novas autoridades militares são enviadas de Icuipiranga com 50 praças e munições. Naturalmente ordem que Maparajuba deixara no acampamento durante sua ausência no Alto Amazonas.

Sena parte com a sua expedição antes de Santarém se render. Vae adiante de Maparajuba com 800 homens para restituir a Manáos o regime da lei conspurcada. O desembarque não oferece nenhum obstáculo (6 de Março de 1836); ocupa a Fortaleza e o Quartel, instala os seus soldados nos melhores com- modos e deixa uma forte guarnição a bordo dos barcos e canoas, que se colocam em semicírculo em frente ao porto. Com a ardileza do costume, reunida a Câmara, depõe as autoridades e nomeia outras; Joaquim Ignácio Rodrigues do Carmo, o benemérito cidadão na frase de Sena, foi escolhido Juiz de Paz. O Vigário Geral João Pedro Pacheco assume o exercício de Juiz de Direito.

Sena lê um extenso Memorial às novas Autoridades. E’ uma recapitulação de todos os agravos de Bararoá e Henrique Cordeiro. Recusou a chefia suprema de Icuipiranga. Mais de 1.800 homens o aclamaram com delírio. Preferiu, porém, vir a Manáos pedir o apoio de seus Moradores á causa da Liberdade. No caso contrário, «forte barreira fará os usurpadores dos Direitos Pátrios». Não alimenta nenhuma intenção maligna; logo que esteja na Presidência da Provincia um governo brasileiro, largarei as armas, afirma em tom arrogante. O auditório deu-se por entendido (Mem. Sena cit.).

Dias depois (12 de março), desembarcaram Maparajuba e seu séquito. Com os seus ademanes polidos procura captar as boas graças dos mais receosos e apagar talvez os vestígios de alguma presa de seu loco-tenente. «Sinto da minha aparição nesta Villa, diz ele n’um discurso melífluo; é unicamente com o fim de fazer desagravar as leis der- rocadas pelo despotismo e não perpetrar roubos, assassinos, desolações, como aleivosamente o espirito de intriga quer fazer persuadir, assacando ódios sobre mim, que não trabalho senão a defender as nossas garantias e os sagrados Direitos do nosso jovem patrício o Sr. D. Pedro II (Acta de 12 de Março de 1836). Como se vê, Cabanos e Legaes batiam-se por uma mesma causa, mas em campos opostos e devorando-se uns aos outros.

Alguns Moradores, á aproximação dos Rebeldes, tiveram ainda tempo para abandonar a Villa. E’ possível que o êxodo não pare, apesar do ato refletido de Sena em colocar os melhores sujeitos nos cargos mais importantes. Maparajuba percebe que a desconfiança permanece em estado latente, ou que, com um rasgo de franqueza e de argucia, ela pôde se dissipar ou diminuir de intensidade. Manauenses! eu VOS convoco, volta ele a dizer, eu vos convido a vir tomar parte nas nossas honrosas fadigas. Correi ás armas, vinde guarnecer a nossa Villa, não dês credito ás vozes aterradoras que se tem propalado de quererem roubar e entornar o nunca assas precioso sangue dos nossos semelhantes». E’ uma finura que se desdobra até a promessa de regressar a Icuipiranga, para que a sua presença não continue a inspirar desconfiança aos cidadãos pacíficos. Vinde sem susto, sem terror, pois a minha presença e da voluntaria tropa que me acompanhou a esta Villa, se faz preciso regressar, sem perda de tempo, para o Baixo Amazonas, afim de fazer tombar naquele cantão o despotismo de que já vos achais livres (ibid.).

Para muitos, Henrique Cordeiro foi o causador desta primeira invasão dos Cabanos. Um cronista coevo assevera que ele não só deixou de dar ordem á defesa, como conservou no bolso as chaves do trem de guerra. N’outro lanço, acrescenta que a Villa foi invadida por um insignificante troço de miseráveis, comandados por um Preto» (Dicc. do Alto Amaz. cit., 278). Esse troço de miseráveis subia, entretanto, a 1.200 homens, sob o comando de Bernardo de Sena, que não era um preto boçal. Pelos seus discursos vê-se que tinha alguma instrução e arengava melhor que os seus chefes da Capital. Mais tarde, vemos Cordeiro impedindo, em Serpa, a subida dos Cabanos. Todavia, as rivalidades entre os Moradores crescem sempre; cada qual trata de desertar para os sítios. Uma epidemia de varíola completa a debandada.

O resto pactua com os invasores sem nenhum deslise depressivo. Por outro lado, a linguagem de Sena e Maparajuba prova que não se podia impedir esse facto. Cordeiro vivia ainda em 1853, n’uma propriedade do baixo Rio Negro, às voltas com os seus cacoais, e sem imaginar que estava correndo mundo, como cobarde e pusilânime, nas páginas de um livro apaixonado e novelista. Ai agasalha o sábio. Wallace, ao subir e voltar este de sua viagem ao Waupés (Travels on the Amazon and Rio Negro, 138-220).

*Bertino de Miranda (1864-1919). Jornalista e historiador paraense. No final do século XIX para início do século XX participou ativamente da vida social, política e cultural do Amazonas. O livro de sua autoria, que em partes levamos ao conhecimento do nosso público ledor, é um importante e esclarecedor documento sobre a História amazonense.

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