*Arthur Cézar Ferreira Reis
A população da Comarca do Alto Amazonas jamais se conformou com a sujeição ao Pará. A explosão de 1832 vale como uma prova das aspirações de independência que dominavam os amazonenses. E não eram sem razão essas aspirações. As autoridades paraenses, tendo um território imenso sobre que providenciar, não podiam, mesmo dispondo da melhor boa vontade, governar de maneira a fazer a felicidade daqueles brasileiros, dando progresso à região. Era impossível.
Compreendendo a justiça da causa dos amazonenses, vozes autorizadas ergueram-se, fora da comarca, pregando pela medida ansiada. No parlamento nacional ouviram-se orações convencedoras, chamando a atenção do país para o Alto Amazonas. O Império devia-lhe uma reparação. Essa reparação seria o restabelecimento da condição de Província.
Dom Romualdo Antônio de Seixas, cuja eloquência estava ao lado das grandes causas nacionais, foi o primeiro a bordar comentários em torno da situação da comarca, em 1826, lembrando a restauração como Província do Império. Lamentou o estado de decadência a que chegava. Descreveu-a, para que a câmara tivesse uma noção exata e sentisse a necessidade da providência que pleiteava. Recordou o trabalho criminoso dos governantes paraenses, estorvando os raros homens que vinham no regime colonial, dispostos a levantar a Capitania. Mostrou que o Rio Negro enquanto estivesse sujeito ao Pará, nem o presidente deste poderia olhá-lo com atenção e zelo, consequência da distância, nem o governo subalterno da comarca poderia agir com desembaraço em beneficio da coletividade. Os argumentos eram fortes, impressionantes. Por mais de uma vez D. Romualdo veio à tribuna, insistindo porque o considerassem e oferecendo à deliberação da casa, a 27 de maio de 1826, um projeto dando à comarca a categoria de Província, com capital na Cidade da Barra do Rio Negro, prelazia independente do bispado do Pará e auxílio pecuniário de 12:000$000, fornecido pelo Maranhão até que as suas rendas lhe bastassem.
Deputado pelo Pará, que administrava na qualidade de presidente da junta governativa aclamada no momento da adesão à Independência, D. Romualdo, Marquês de Santa Cruz, conhecia bem o que ia pela Amazônia. A sua palavra, em favor dos amazonenses, significava muito. Embora, o projeto não teve andamento.
Logo no ano seguinte, porém, a comissão de estatística da câmara, desencavando-o, juntamente com vários outros, trouxe-o à deliberação, reformando-lhe a redação e alterando-lhe o texto, com um bem elaborado parecer – “A comissão de estatística, reconhecendo os grandes melhoramentos de que é suscetível o imenso território da comarca do Rio Negro, em que existe uma população civilizada superior a 16.000 almas, além de 62.000 indígenas errantes ou sedentários, ainda não atraídos à sociedade, e ponderando que, sem o estabelecimento de um governo local, que promova de perto o interesse daquele vasto e riquíssimo país, não se podem colher os grandes benefícios prodigalizados pela natureza; tem a honra de apresentar o seguinte projeto de lei: “A Assembleia Legislativa do Império decreta: – Art. 1º. Criar-se-á uma nova província denominada Província do Rio Negro, a qual compreenderá todo o território que formava o antigo governo deste nome, da Província do Pará. – Art. 2º. A cidade capital da nova província será na povoação da Barra sobre o Rio Negro, e terá o nome de Cidade de São José da Barra. – Art. 3º. Criar-se-ão nesta província o presidente, comandante militar, junta da fazenda, conselho geral e conselho administrativo da mesma categoria e vencimentos dos das províncias da segunda ordem do Império. – Art. 4º. Ficam derrogadas todas as leis e ordens em contrário. Paço da Câmara dos Deputados, 15 de outubro de 1827. – Raymundo José da Cunha Mattos – Romualdo, arcebispo da Bahia – Marcos, bispo do Maranhão – L. P. de Araújo Bastos – Luiz Augusto May”.
Aprovado, o projeto foi mandado imprimir, entrando em discussão a 13 de maio de 1828, defendido por Lino Coutinho, Holanda Cavalcante e Cunha Mattos. A 17, D. Romualdo abundou em considerações acertadíssimas, que a câmara ouviu respeitosamente. Não seria, porém, ainda desta vez, a reparação, pois, encalhando o projeto, em 1832 ficou deliberado que se adiassem os debates, enquanto se aguardassem informações mais precisas sobre a comarca.
Assuntos de gravidade, quais os da pacificação do Império, ameaçado de desmembramento, e altas questões partidárias absorviam as cogitações dos políticos e dos administradores, de sorte que só em 1839 voltou a ser objeto de atenção o aspirar da comarca. Prestigiou-o, solidarizando-se com ela, o doutor João Cândido de Deus e Silva, outra figura de relevo no cenário imperial, justificando a 03 de agosto, com sólida argumentação, um projeto criando a Província do Rio Negro, que seria de segunda ordem, com bispado igual ao de Mato Grosso e capital onde a respectiva assembleia provincial designasse. Defendendo-o, aquele parlamentar evidenciou ao lado de outras razões, a necessidade de aparelhar aquelas paragens, nos lindes com nações estrangeiras, para que não tivéssemos, um dia, de sofrer surpresas desagradáveis. A soberania do Brasil exigia aquela providência que agitava.
O assunto, palpitante, foi debatido. Argumentava-se que a comarca não dispunha de rendas suficientes para atender à suas despesas, uma vez restabelecida como província; não estava aparelhada com pessoal capaz para o preenchimento dos cargos públicos. A própria assembleia provincial poderia ser organizada? A agricultura, a indústria, a navegação, o comércio, tinham desenvolvimento bastante? Esqueciam os que combatiam a ideia ser justamente a necessidade de levantar a região, dando-lhe todos os meios de vida, civilizando-lhe a população, indígena em sua grande totalidade, o motivo básico da campanha pela medida suplicada. O projeto, a 31 de agosto, sob número 111, passou a discussão, mas esta adiada sempre, esquecida, só em agosto de 1840 teve a primeira aprovação.
Correram quase três anos. A câmara preocupava-se com problemas que lhe pareciam mais sérios. Foi quando o ministro dos estrangeiros, Honório Hermeto Carneiro Leão, cuja individualidade já pairava muito alto, tais os serviços à nação, insinuou a divisão do território do Pará em duas províncias. Aproveitando o momento, a 12 de maio de 1843 o deputado Ângelo Custódio solicitou que o projeto fosse retirado do sono a que o condenavam. Atendido, rompeu os debates o deputado Ferraz, que o combateu tenazmente, apoiado por Carneiro da Cunha e Fonseca. Este último requereu que a discussão sofresse adiamento até que o governo, pela repartição competente, procedesse os inquéritos censitários, estudasse a topografia, enfim, colhesse os dados econômicos e financeiros pelos quais a assembleia se pudesse pautar e deliberar sobre a organização territorial do Império.
Souza Franco, Manoel José de Albuquerque, Fernandes da Silveira e Paula Cândido pronunciaram-se contra o requerimento, que era a repetição da manobra empregada de 1826 a 1832. Se os dados, pedidos naquela época, já estavam na casa, qual o motivo de os desejarem novamente? Caiu o requerimento. Os debates prosseguiram aqui e ali pontilhados de ironia, por vezes azedos, prendendo realmente a câmara, que deles participou revelando muito interesse.
Souza Franco, ex-presidente do Pará, de que era agora representante, mais tarde ministro do exterior, dos maiores estadistas do Segundo Império, bateu-se ardorosamente pela causa dos amazonenses. Os seus discursos, longos, entusiásticos, fartos em elementos de prova, pronunciados com certa elegância, lidos nos nossos dias ainda agradam. Aqueles dias, feriram fundo os propósitos de hostilidade do grupo que teimava em negar condições à comarca para a situação política tentada. Carneiro da Cunha, Souza Martins, Ferraz, Henrique de Rezende e Fonseca formavam esse grupo.
Souza Martins, alargando-se em considerações e mostrando-se mais cordato, lembrou a transformação do Rio Negro em território, com o presidente e demais autoridades nomeados na corte, sem assembleia, que daria lugar a um simples conselho tendo a faculdade de sugestionar a Assembleia Geral a propósito dos benefícios de que carecesse a região. Sancionadas, essas sugestões entrariam em vigor como leis provinciais. O modelo para a criação do território buscassem-no aos Estados Unidos, onde a constituição lhe dava existência plena. A ideia não teve as honras de provocar interesse. Caiu logo.
Paula Cândido, Ângelo Custódio, Sérgio, Miranda Ribeiro, acompanhando vibrantemente a defesa de Souza Franco, intervieram trazendo novos elementos elucidativos. A comarca não era o deserto que se propalava. As suas possibilidades econômico-financeiras, diante das formidáveis reservas do solo e das águas, não tinham conta. Rememorando o passado, não se deveria esquecer a obra gigantesca de Lobo d’Almada, destruindo os alegados fúteis de ser impossível civilizar aquele trecho do Brasil. As estatísticas falaram. As tentativas armadas de 1832 e da cabanagem vieram à baila. Uma argumentação férrea, incontestável, toda trabalhada com lógica e fundada em detalhes rigorosos, em fatos positivos, foi utilizada pelos amazônidas de então, Souza Franco à testa.
O projeto, refundido quase que totalmente pelas emendas de Souza Franco, com redação apresentada pela comissão de direito, afinal, a 19 de junho, mereceu aprovação da câmara. A Província, em homenagem ao oceano fluvial que a cortava de oeste a leste, teria o nome de Amazonas. Os seus limites conservavam-se como na Capitania de São José do Rio Negro, reprovação expressa ao ato da administração paraense, alterando, em 1833, os que Mendonça Furtado marcara.
Da câmara, o projeto passou ao senado, em obediência aos dispositivos de lei. Alí, porém, o deixaram à margem, relegado a esquecimento.
No entanto, já se tornara o caso da autonomia do Rio Negro um dos mais importantes para a nação, porque envolvia a sua defesa nas fronteiras do norte, abandonadas, expostas aos insultos de estrangeiros, como sucedera no vale do Rio Branco com a intrusão dos ingleses vindos da Guiana Britânica. No Pará, mesmo, os seus homens públicos se preocupavam, de há muito, considerando a província acertadíssima embora não com a largueza projetada, pois a queriam ficando o governo do Rio Negro subordinado ao de Belém, como nos tempos coloniais. O ambiente de desconfianças para com o Amazonas ia desaparecendo. Todos se convenciam do infrutífero de qualquer esforço para levantá-lo sem aquela medida. E tanto assim que o conselho provincial a solicitara à Assembleia Geral do Império. Depois, em idêntico proceder, a Assembleia Provincial, concordando com o deputado João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha que, a 07 de novembro de 1844, se declarou abertamente ao lado dos amazonenses com a seguinte peça legislativa – “Indico que se dirija à Assembleia Geral uma representação para que a comarca do Alto Amazonas seja elevada à categoria de Província”.
Em 1841, Souza Franco, à frente dos destinos do Pará, lhe reconheceu o fundamento e se apressou a reclamá-la, em oficio ao ministro dos estrangeiros, talvez até motivando a insinuação que este fez na câmara, em 1843.
O catarinense Jerônimo Coelho, ex-deputado por sua província natal, ministro da guerra e da marinha no ministério de 02 de fevereiro de 1844, inegavelmente um vulto destacado nas altas esferas imperiais, governado o Pará, deu a última demonstração oficial de que lá, dentro daquele pensamento, não se contrariavam mais os sentimentos de altivez do povo da comarca. Praticou vários atos, referidos atrás, tentando impulsioná-la. E em outubro de 1849, dirigindo-se à Assembleia Provincial, no relatório expondo as necessidades da Amazônia, dando conta de sua gestão, sugeriu a reparação pleiteada. O projeto que organizou, para ser enviado ao Parlamento, de dezoito artigos, precedido de uma exposição de motivos, criava a Província de São José do Rio Negro, com governo filial e subalterno ao de Belém, capital na cidade da Barra do Rio Negro, oito deputados à assembleia paraense, três representantes ao congresso imperial sendo um ao senado e dois à câmara, continuando na parte eclesiástica incorporada ao bispado do Pará.
A ideia ganhava terreno, dia a dia, com a amplitude votada pela câmara em 1843, ou na restrição desejada pelos paraenses. Seria vencedora, não restava dúvida.
João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, reeleito deputado, preocupado com o assunto e com o problema da navegação do rio Amazonas, desdobrou-se em démarches na corte. O senado moveu-se. A 22 de junho, o projeto de 1843 veio a debate. Os velhos e inexpressivos argumentos de combate sustentados na outra casa do Congresso tornaram a vigorar. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Visconde de Vergueiro, da bancada paulista, falou contra. Percebeu-se facilmente o motivo. A comarca de Curitiba, parte da província de São Paulo, também se ensaiava nos desejos de autonomia. Fosse criada a do Amazonas, o Paraná tinha de ser amparado na pretensão, de que a câmara já tomara conhecimento e agora o senado, através de um aditivo.
José Saturnino da Costa Pereira, Holanda Cavalcante e Miguel Calmont du Pin e Almeida, Marquês de Abrantes, brilharam. O Alto Amazonas dispunha dos elementos negados. Além do mais, o Império estava na obrigação de reparar a injustiça cometida em 1825, restituindo-lhe a condição política reivindicada e em discussão. Acompanhando, animados, a polêmica travada, Tenreiro Aranha e Souza Franco, a 23 e 30 de junho, vibraram no recinto da câmara em novas orações calorosas, rebatendo as afirmativas fáceis, demolindo alegações não verdadeiras, exigindo a restituição do direito de que há várias décadas vinham privando os brasileiros do extremo norte.
O senado recusou as ponderações de Campos Vergueiro, aceitando o ponto de vista do restabelecimento da Província, rebaixada após a Independência, portanto a reparação que tanto tardava. Aprovou o projeto, em 28 de agosto. Subindo à sanção, o governo imperial não se mostrou indeciso. D. Pedro II, referendado pelo ministro do Império, Visconde de Monte Alegre, pela lei 592, de 05 de setembro de 1850, satisfez a maior aspiração da comarca.
A Província do Amazonas teria a mesma extensão e limites da antiga comarca do Rio Negro e não do Alto Amazonas, isto é, os baixados a rigor por Mendonça Furtado, em 1758. Daria um deputado e um senador ao Parlamento do Império, sendo de vinte membros a Assembleia Provincial. A capital ficaria instalada na cidade da Barra do Rio Negro.
O problema a resolver agora era o da escolha do primeiro presidente da nova unidade administrativa. Souza Franco, Tenreiro Aranha, os outros amazônidas dos embates parlamentares, João Henrique de Mattos e João Ignácio Rodrigues do Carmo, amazonenses ilustres, estes dois últimos, aos quais a nação devia valiosíssimos serviços públicos e profissionais, mereciam confiança, estavam apontados para o cargo. O governo não vacilou. Nomeou Tenreiro Aranha a 07 de julho de 1851. João Ignácio Rodrigues do Carmo, coronel João Henrique de Mattos, Manoel Thomaz Pinto, doutor Manoel Gomes Correa de Miranda e cônego Joaquim Gonçalves de Azevedo foram os titulados com as vice-presidências.