Manaus, 28 de novembro de 2023

A orfandade das letras

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É comum dizer-se que as letras nacionais estão órfãs quando algum escritor ou escritora de renome rompe os grilhões da matéria e parte rumo ao infinito e a planos do etéreo. Poucas vezes esse sentimento é considerado em relação a verdadeiros livreiros, propagadores da leitura, devotados seres humanos que se dedicam a projetar e vulgarizar – no exato sentido do termo – o que há de bom nos acervos antigos e lançamentos mais modernos.

No caso de Francisco Alves deu-se uma exceção considerável, inclusive, por haver se tornado um grande editor. Julgo que o expressivo patrimônio que amealhou e a doação que fez para a Academia Brasileira, devem ter firmado sua projeção anos adiante e o mantém vivo na história da instituição de cultura mais considerada país afora.

Aqui na taba acabamos de acompanhar a angústia da família e saber do encantamento de Joaquim Melo, livreiro e mestre em Sociedade e Cultura da Amazônia, estudioso de temas indígenas e amazônicos, homem sábio, simples, acostumado a usar a beira da calçada para efusiva propagação de livros e autores. Era daqueles que tinha prazer em anunciar uma obra rara que conseguira recolher de sebos tradicionais e de convidar amigos para o lançamento de novos autores ou de reconhecidos mestres da literatura e das artes.

A todos chamava para visitar a “Banca do Largo” que vinha sob sua brilhante direção desde que ousamos reabilitar e restaurar o Largo de São Sebastião e ali restabelecer o tacacá e criar uma banca de livros. Foi uma ação hercúlea, contra tudo e quase todos que reagiam ao novo uso que se pretendia conferir ao mais nobre espaço de nossa cidade. E foi esta banca, recheada de obras dos mais variados autores e sobre diversos temas que ele projetou para muitos lugares do Brasil e do exterior, exibindo com alegria e sem qualquer ponta de orgulho todas as notícias que registravam o “point” que sua habilidade, dedicação, seriedade e persistência conseguiram consolidar.

Afora isso era estudioso. Não propalava suas pesquisas, mas as realizava com todo o cuidado e critério. Pediu-me o prefácio para sua obra sobre o SPI – Serviço de Proteção aos Índios, com a qual obteve o grau de mestre, o que fiz com carinho especial. Pedi-lhe o prefácio para a segunda edição do meu “Eduard Ribeiro – vida e obra”, o que ele fez com a generosidade de sempre. Éramos mais do que amigos fraternos, pois escavadores de relíquias, e costumávamos descobrir juntos algumas joias literárias.

Ainda há pouco, não faz muito mesmo, falamos mais de uma dezena de vezes por telefone para avaliar os novos lançamentos de livros de membros da Academia Amazonense de Letras em derredor da banca, tal como ele sugeriu que a entidade promovesse em 2022 sob a liderança do esmerado e lúcido presidente Aristóteles Comte de Alencar Filho. Dizia-me, então, como sempre gostava de fazer, com simplicidade devotada de bom amigo, que recolhera uma raridade para ofertar-me no Ano Novo. Do meu lado, comunicava-lhe que em breve sairia o meu “Teatro Amazonas – vida e arte” e ele o receberia autografado com a gratidão que lhe devia.

Não houve tempo para tanto. O que ele havia pensado e proposto para o novo ciclo do ano que acaba de ter início foi interrompido por desígnios superiores com encerramento de sua passagem por esse plano. Para nós, foi notícia desastrosa a de que fora acometido de infarto do miocárdio quando em trabalho e rodeado de livros como gostava de viver, e era seu sustento.

Quem dará continuidade a seu importante trabalho? Quem fará realizar o seu “Tacacá na Bossa”, invento de arte que foi decisivo para a animação cultural do Largo e a subsistência de inúmeros amazonenses? Quem há de promover as buscas de “arqueologia literária e editorial” que ele fazia diuturnamente? O tempo dirá, mas a Banca do Largo não pode fechar a porta nem perder a função que desempenha desde 2004, sobretudo em honra à memória de Joaquim Melo.

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