Manaus, 28 de março de 2024

As Náiades e mãe d’água (VI)

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Poetas dos rios e da floresta

Tenreiro Aranha permaneceu figura solitária por um bom tempo, no panorama das letras amazonenses, escrito pelo soldado português Henrique João Wilkens35, publicado em 1819 em Lisboa.

Henrique João Wilkens

O poema foi escrito na língua Mura e traduzido para o português pelo Padre Cipriano Pereira Alho, vigário de Moura 36. Wilkens integrou a primeira expedição de Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, de Belém a Mariuá, antiga Barcelos, mais tarde escolhida cidade sede da Capitania de São José do Rio Negro, origem do Estado do Amazonas. A comitiva oficial reunia autoridades militares, técnicos e políticos, numa viagem estendida por 88 dias, pondo a comitiva em contato com vários grupos indígenas. Os Mura que constituíam um povo arraigado ao domínio de seu espaço geográfico, nação composta de mestres remadores e guerreiros de primeira linha, foi o mais celebrado. E, portanto, a Muraida um poema épico escrito sobre a odisseia dos Mura, na sua eterna luta contra o invasor. A cena das operações é o rio Madeira. O autor, no entanto, embora deva situar-se do ponto de vista formal, entre o arcadismo e o romantismo, não logrou libertar-se das influências do classicismo, bem marcado no uso da oitava rima camoniana:

Desse Madeira a exploração primeira,
Impediu, por ventura, o Mura forte?
Suas Canoas vimos navegando,
Diz, fomos, por ventura, os maltratando?

Em seguida as convergências se permutaram e a boa poética trabalhada no Amazonas assumiu estilos das ten dências legadas pelos movimentos romântico, parnasiano e simbolista, numa disposição que dominou por muito tempo o seu panorama literário. Alguns poetas desses períodos, no entanto, jamais deixaram de lado o olhar sobre a vida nos rios e na floresta.

Francisco Gomes de Amorim

Houve, ainda, nesse momento, a adesão de poetas vindos de outras terras e estreitamente integrados ao Ama zonas, como o português Francisco Gomes de Amorim (1827-1891). No romance O caçador e a tapuia, escrito em redondilhas maiores, no tom tradicional dos cancioneiros medievais, o poeta se mistura à paisagem amazonense e, em dezesseis quadras vai tecendo o seu poema, em que o caçador, em vez da caça, deseja é acossar a tapuia.

É um diálogo estabelecido entre o caçador e a tapuia. A jovem tenta afastar-se das intenções do caçador. Ela se esgueira no mato, por certo mulher de origem indígena, pelo visto uma cunhantã. E o poema se encerra, sob a atmosfera de sentido erótico, bem ao gosto tradicional na linha do romanceiro ibérico, com as lições da tapuia ao caçador, ensinando que ele precisa aprender a caçar. Enfim, o caçador que estava acostumado a pegar dúzias de caças, ante a bela tapuia ficou tonto, atoleimado.

A prosódia desse poema é legitimamente lusitana, como está nos versos
sorrindo-te sempre assim!
ou
Anda cá, linda tapuia,
ou ainda
Parvo da caça ficou.

Mas nele há muito do léxico amazonense, com o uso da própria palavra tapuia, e das palavras cacaual, goiabas, baunilha, cotia e a expressão homem branco, no sentido de patrão.

Ermanno Stradelli

Outro europeu integrado com emoção ao Amazonas é Ermanno Stradelli (1852-1926). Ainda na Itália, interessou-se pela região desde muito jovem e resolveu conhecê-la. Veio e nunca mais saiu em idas e vindas, da Itália ao Amazonas, do Amazonas a Itália, até ficar plantado como semente fértil em terras do rio Negro. Meteu-se por floresta e rios e se encantou com o que viu e experimentou.

Fruto mais genuíno de sua vivência amazonense é o poema que escreveu em decassílabos irregulares, intitula do “Pitiapo”.

Na sequência da terceira parte desses versos, o poeta ocupa-se com a imagem da jovem cabocla cujo nome intitula o poema. Encantam o poeta os movimentos da moça no manejo do tear e da roca, no cultivo da roça e de tarefas domésticas; as virtudes culinárias que transformam a caça e o pescado em delicados manjares; das vasilhas de barro preparadas com habilidade melhor que a dos bons oleiros. E da sua dança. Nas festas é a mais gentil e a mais formosa de todas.

O poeta compara sua personagem à Ceucy que, em contato com o sumo de uma árvore, concebeu Jurupari, em formato milagroso. Esse mito, concebido pelas populações primitivas do alto rio Negro e estudado por Stradelli, constitui um dos elementos mais importantes para se entender a alma desse povo. Stradelli compara, ainda, a bela jovem, motivo do seu canto, com uma esbelta bacabeira, planta nativa da região, de cujos grãos suspensos em amplos cachos, a cunhantã “amassa com suas mãos” e deles extrai o sumo alvo como o café com leite, situado entre as bebidas mais saborosas da região.

Esse italiano, tocado pela tradição dos povos primitivos amazônicos, produziu uma das mais belas páginas da poética amazonense.

Quintino Cunha

Entre as personalidades atraídas pelo fascínio amazônico, de outras regiões do país, registra-se a presença do cearense Quintino Cunha (1873-1943). Passou uma boa temporada em Manaus e aí deixou um poema célebre chamado “Encontro das águas (Rios Negro e Solimões)”. É uma celebração do encontro das águas negras e amarelas desses rios, fenômeno natural observado em frente à cidade de Manaus. O poeta, em verdade, aprecia a paisagem como um visitante atento, sem, no entanto, integrar-se e se com prometer com ela. Descreve à Maria, sua companheira de viagem, o reboliço das águas no encontro dos dois rios:

Vê bem Maria aqui se cruzam:

e encerra por comparar o encontro dele com ela, com o encontro dos dois o Amazonas de amor que os une e encanta.

Mavignier de Castro

Outro poeta cativado pela Amazônia foi Mavignier de Castro (1895-1972). Chegou jovem a Manaus, vindo do Nordeste, após temporada em Paris onde se bacharelou em Ciências e Letras. Expressou-se mais em prosa, gênero em que chegou a publicar alguns livros. Seus poemas estão esparsos em jornais e revistas e revelam o fascínio que a paisagem amazônica exerceu sobre ele.

Há de se indagar se existiria uma poesia geográfica. Nem por isso se poderia dizer que são geográficos os poemas motivados pelos rios.

No soneto “Em louvor do Solimões”, há um sentido fluvial que atinge os níveis de um poema didático. Mavignier de Castro celebra o nascimento e a caminhada desse rio, com todas as virtudes de suas águas e da floresta que o margeia e lhe confere a função de uma fonte produtora de

essências finas e mercancias raras!

O poeta aceitou celebrar o rio Solimões, levado, sem dúvida, pelo sentimento de adesão à terra que o recebeu generosamente.

Outros poetas se sucederam na transformação dos rios do Amazonas em matéria de poesia.

Paulino de Brito

Paulino de Brito (1858-1919) constitui um bom momento na dicção da poética amazonense. Seu poema clássico é o “Rio Negro”, com que celebra o maior rio de águas negras do planeta, que banha a cidade de Manaus.

Diz o poeta que em sua terra existe um rio caudaloso

porém triste e sombrio;

Na visão do poeta o rio é feio como um mar de tinta escuro. Tem a profundeza coberta de negrume, onde habitam monstros legendários e onde dorme toda a legião fantástica do horror. No entanto, ele vê, ao sair das profundezas das águas, que o rio possui em sua face, a doçura do sol e o reflexo do céu, com as margens abençoadas pelos per fumes da floresta. Por vezes o rio Negro é azul ao refletir o infinito sem nuvens, por vezes dourado quando recebe os reflexos da lua nas madrugadas silenciosas.

Mas logo em frente o poeta é dominado pela depressão face às águas negras que parecem

…lágrimas estéreis
de Satanás…

O poeta, enfim, encerra a sua ode em tom de elegia, com uma imprecação ao rio Negro. Compara-se com ele em seu destino. Encanta-se com as águas e o céu refletido nesse espelho, mas afasta o rio para longe em sua beleza, posto o pobre poeta estar preso

aos fantasmas do meu sonho
e às trevas de minh’alma.

Conquanto tenha sido escrito com ritmo e metro rigorosos, marcado por acento situado entre o romantismo e o simbolismo, neste poema se anuncia uma nova atmosfera que se vai cristalizar com Américo Antony.

*

O trabalho dos poetas amazonenses com o rio e a floresta – o rio Amazonas e seus afluentes, que é o seu maior motivo de canto -, pode até situá-los no rol dos chamados regionalistas. O regionalismo, no sentido em que se põe a questão neste espaço, no entanto, restringiria a visão de mundo adequada à poética. A poesia é um fenômeno de natureza universal. A delimitação do espaço geográfico de sua influência, talvez a esvaziasse de sua essencialidade como instrumento de interpretação do mundo e da vida, esse que, aliás, não é o caso dos elementos concebidos neste livro. Como não é, também, o caso dos autores nele examinados.

O rio Amazonas representa, enfim, para os poetas amazonenses, o mesmo que o Tejo para o português Rodri gues Lobo (1580-1621):

Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
o Guadalquivir para o espanhol Garcia Lorca (1898-1936):
O río Guadalquivir
corre entre laranjeiras e oliveiras39
e o Neckar para Hölderlin (1770-1843):
Em tus valles mi corazón me despierto
a la vida, tus ondas me ceñían jugando.40

Todos cantaram os seus rios e nem por isso deixaram de ser universais.

___________________

35 São escassos os dados biográficos deste autor, sabendo-se apenas que é de nacionalidade portuguesa e que esteve na Amazônia a serviço da Coroa, quando escreveu o poema em 1785, Os dados foram levantados em O Amazonas – sua história, de Anísio Jobim, 2ª edição, Editora Valer, Manaus, 2018.

36. Arthur Reis, revista da Academia Amazonense de Letras. No. 12, p. 156/162.

37 Capitão General do Exército exerceu, entre outros cargos importantes na política, a função de governador geral da Provincia do Grão-Pará, de 1751 a 1759 (Mercês, Lisboa 1701-Viçosa, Évora 1769)

38 Afluente à margem esquerda do Río Amazonas, com a extensão de aproximadamente 3.315 km. E o 17°, maior rio do mundo em extensão. Nasce nos Andes, na Bolívia, e desemboca próximo à cidade de Itacoatiara, em frente. É um dos mais celebrados rios amazonenses em poesia e prosa.

39 Tradução de Willian Agel de Melo (Catalão, Goiás, 1937), poeta e tradutor.

40 Versão do vernáculo para o espanhol por José Maria Valverde (Valência de Alcântara, Espanha 1926-Barcelona 1998), poeta e poliglota.

(Capítulo Sexto do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).

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