Manaus, 29 de novembro de 2023

História do Amazonas: dúvidas, vacilações e uma afirmativa

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As linhas abaixo são adaptação do texto introdutório à segunda edição revista e ampliada do livro Fundação de Itacoatiara – 1º tomo da Trilogia Itacoatiara 330 Anos – que almejo lançar brevemente. 

QUANDO da idealização de um projeto literário, defrontamo-nos com dois problemas: um pertinente à elaboração da obra, outro relativo à sua impressão. A escrita dá a aparência de ser uma coisa simples, mas a conferência das provas tipográficas com o original não demonstra ser uma tarefa fácil. Em tese, a preparação técnica de originais para publicação envolvendo revisão de forma e, em certos casos, de conteúdo, geralmente se baseia num contrato de prestação de serviços entre o autor e a editora escolhida; vale dizer, tanto a leitura do livro quanto o acompanhamento do texto da prova competem ao revisor a serviço da produção gráfica. Dito contrato ‘amarra’ as partes e garante a entrega, no prazo previamente combinado, de um trabalho o mais fidedigno possível e de alta qualidade.

O elevado custo do ‘pacote editorial’, acima referido, é a principal causa dos autores de menores posses rejeitarem aqueles profissionais gráficos. Por isso, a maioria dos autores é levada a exercer o papel de autorrevisor da prova de seus livros – uma ação espontânea perpetrada quer por elementos já experimentados na arte da escrita, quer por estreantes impelidos pela ideia dominante perseguida com interesse e paixão de ingressar no ramo. Mas, nem sempre as coisas acontecem como esperado. Embora empenhados em executar bem e fielmente o trabalho de inspeção e correção de seus textos, os autorrevisores comumente falham, são levados não voluntariamente a cometer equívocos. Na ânsia de melhorar ou adensar os originais, sem o querer, aqui e ali passam por uma falha que se esconde; não se deixa ver. Apressados ou por descuido, deixam em esquecimento erros e omissões que irão comprometer a inteireza de sua obra.

O questionamento de as casas editoras não serem obrigadas a manter revisores em seus quadros, reflete o que acontece em todo lugar. A expressão “Todo autor é péssimo revisor”, parece óbvio, originou-se dos costumados erros que todo processo de autorrevisão propicia. Isso se coaduna com as palavras de Alexandre Herculano (1810-1870), in Cartas II, página 78: “A primeira edição de um livro não passa de uma cópia em limpo”.

Escorado nestas lições, decidi reescrever “Fundação de Itacoatiara”. Justo para corrigir erros, esclarecer fatos e situações. Ainda considerava necessárias mais investigações para reforçar o conjunto de linhas principais, ou eixos, que estruturam o trabalho. Ou seja, a opção por esta segunda edição revista e ampliada foi no sentido de pôr em dia a matéria tratada.

Comecei a mexer no livro antes de completar um ano de lançado. No início timidamente, depois fundamente. Ao longo de todo o texto fiz acréscimos e reparos em escala bem maior. Cortei linhas, alterei e esclareci conceitos tanto nos antecedentes, na parte historial propriamente dita quanto nas etno (geo) gráficas. Ainda, ampliei os quadros cronológico, iconográfico e de citação de autores.

Dentre várias correções pontuais feitas, destaco as do Capítulo II: 1ª) A imagem da Padroeira do povo católico de Itacoatiara, Nossa Senhora do Rosário – ao reverso do que fiz constar no livro original – não foi esculpida por santeiros maranhenses, porém, é uma construção portuguesa datada do início da segunda metade do século XVIII; 2ª) O substituto do padre João da Silva na chefia da missão de Abacaxis, em 1698, foi o padre Domingos de Macedo – e não o padre Antônio de Macedo; 3ª) O governador Mendonça Furtado chegou a Mariuá em 08/01/1755 – e não em 28/12/1754; e 4ª) O pouso escolhido, junto ao sítio Itaquatiara (onde hoje é a Praça da Catedral), para sediar em 1758 o primeiro casario da vila de Serpa, ficava uns 400 metros a montante – e não a jusante do Igarapé do Jauarí; a do Capítulo III: Quem esteve em visita ao Rio Urubu em 1664, onde localizou índios Aroaqui, foi o sertanista Pedro da Costa Favella – e não o capitão-mor Francisco de Melo Palheta; e as do Capítulo IV: 1ª) O padre João da Silva em 1698 foi substituído em Abacaxis pelo padre Domingos de Macedo – e não pelo padre Antônio de Macedo; 2ª) O governador Mendonça Furtado alcançou a vila de Mariuá em 08/01/1755 – e não em 28/12/1754; e 3ª) O ato solene de instalação da vila de Serpa ocorreria em 01/01/1759 – e não em 01/12/1759.

Na verdade, sem alterar a história e o clima, estou fazendo, em termos de linguagem e cotejamento de novas provas documentais, um novo livro. Como historiador, não me movem questões de outra índole senão a busca da verdade dos fatos e o desejo de fazer chegar a muitos lugares o eco da História local e regional.

A História nos ensina muito e nos oportuniza várias interpretações. Mas, ela é necessariamente refém de nossos gostos, preferências, condicionamentos, isto é, de nossa ideologia. Qualquer evento histórico é fruto de um número tão grande de interações entre pessoas e ocorrências que é simplesmente impossível calculá-las.

Por não ser uma ciência no mesmo sentido em que o é a Física, a História não apenas é incapaz de nos dar um modelo por meio do qual possamos fazer previsões, como ainda traz a incrível propriedade de tornar o próprio passado incerto. Fustel de Coulanges (1830-1889) argumentava que, como todas as ciências, a História consiste em constatar os fatos, em analisar e aproximar os fatos e em estabelecer relações. Para ele, o historiador mais qualificado é aquele que consegue manter-se o mais próximo possível dos textos, que busca interpretá-los com a maior precisão possível e que só escreve e só raciocina segundo tais textos. Enfim, a verdade objetiva pode e deve ser alcançada pelo historiador. Basta que, ainda que olhado à distância, o passado seja vislumbrado com clareza, sem medo e sem pressa.

A História é pouco protagonista em nossa caminhada, e é manchada por longos capítulos que nos enchem mais de vergonha do que de orgulho, como a exploração de muitos por poucos, a depredação da natureza, o extermínio indígena, o abandono do interior do Amazonas. Mas, se há trevas no passado amazonense-amazônico, há também luz. Conhecê-lo melhor iluminará o presente e tecerá o fio da meada para costurar o futuro.

Desta sorte, a Amazônia precisa se reconhecer para ser uma região melhor. A sociedade brasileira (e mais ainda a amazonense) não se interessa pelo estudo da História, e essa conjuntura contribui para a desconstrução da memória coletiva. O desinteresse não é só de professores e alunos, mas está em toda a parte. Faltam debates e conversas sobre o tema. Isso precisa urgentemente mudar.

Segundo o dramaturgo amazonense Márcio Souza, “precisamos avançar nos estudos amazônicos (…). A prática tradicional da História vem ultimamente atravessando uma série de crises, provocadas pela invasão, na comunidade acadêmica, de uma série de conceitos antes circunscritos apenas aos campos da literatura e a certas teorias sociais (…). Atualmente os jovens passam pela escola, especialmente no ensino elementar, com um conjunto mínimo com as disciplinas da História. Estão condenados a viver num eterno presente, porque não contarão com as perspectivas do antigamente (…). Ora, o tal afastamento dos jovens dos fatos do passado leva a uma sociedade do momento, do imediato, reducionista, que não deseja mudar (Souza, 2009)”.

Em geral, os intelectuais acadêmicos são um tipo não muito afetuoso e sem muita abertura; a soberba os deixa mal perante a opinião pública. Se a canção popular diz que “a vida é arte, errar faz parte”, por que cultivar a altivez da infalibilidade? Reconhecer a verdade dos fatos e admitir como importante e justo o trabalho de outrem demandam tempo. Felizmente, tanto no interior quanto fora do circuito acadêmico já há um bom número de intelectuais que não se omitem. Para repetir o historiador Boris Fausto, “escrevem do jeito que querem, sem amarras. São intelectuais sem pose, sem preocupações eruditas”.

A importância das obras de autores procedentes ou não do meio acadêmico está no fato de possibilitar aos estudiosos refletirem sobre a História do Amazonas e da Amazônia. É razoável lembrar que o maior volume do que é atualmente produzido sobre o período colonial amazonense tem ainda como referência as pesquisas realizadas há mais de oitenta anos pelos historiadores Arthur Cézar Ferreira Reis e Mário Ipiranga Monteiro – ambos, tal qual o sociólogo Samuel Benchimol, até um tempo atrás eram demonizados pelo mundo acadêmico.

Em verdade, há uma fome enorme pela História que os trabalhos da academia não conseguem contemplar. Há exemplos aqui e em todo lugar. A historiadora carioca Mary Del Priore, em 2003, abandonou a carreira de professora da USP para se dedicar a escrever sobre a história do País. Em setembro de 2014 relatou que o seu “projeto é escrever para o grande público”. Mary Del Priore e seus colegas Cristóvão Tezza (catarinense) e Laurentino Gomes (paranaense) são considerados escritores com um pé fora da academia. Em maio de 2011 passaram em Manaus, confinados em uma embarcação palestrando sobre as águas do Rio Negro. A par de observarem botos, jacarés e pesca de piranhas, criticaram, em uníssono, os cânones da Universidade.

Na ocasião, disse Mary: “Saí da USP para escrever do jeito que eu queria, sem nenhuma amarra. Saí estimulada pelos meus filhos, que me viam aborrecida. A Universidade te aprisiona num rol de atividades retóricas e burocráticas. Isso me neutralizava”. Laurentino, que durante três décadas foi jornalista, endossou: “Quando me dizem que eu vulgarizo a História, concordo. Vulgarizo mesmo, no sentido latino da palavra, de tornar vulgo, acessível”. Tezza repetiu: “Não acredito em literatura como catarse, mas ninguém produz sem ser afetado pelo que escreveu. Fui sendo escrito pelos meus livros”.

O caminho do equilíbrio nunca foi uma via fácil. A memorialística amazonense, além de não muito ampla, é mal contada. Os relatos que lemos nos livros de História nem sempre descrevem as coisas como realmente se passaram. Por isso, reafirmo aqui o que escrevi na parte preambular da edição original deste livro: a História regional é cheia de dúvidas e vacilações. Minha crítica não coloca os principais achados dessa História em suspenso. Mas, objetiva alertar para o perigo do julgamento apressado e para o massacre que uma opinião pública apaixonada pode provocar no debate intelectual e na busca da verdade.

A frouxidão epistêmica da História não deve servir para acobertar inverdades ou omissões gritantes. Razão é razão. Fatos são fatos. Há décadas, a quase unanimidade dos historiadores amazonenses vem repetindo o equívoco de que “o padre Pedro Pires” foi companheiro do padre Francisco Gonçalves na segunda entrada dos jesuítas na Amazônia Ocidental, em 1658. Na verdade, o tal “Pedro Pires” nunca existiu! Esse nome não consta do Catálogo das Expedições Missionárias para o Maranhão e Grão-Pará (1607-1756), nem do famoso Memorial dos padres do Maranhão, enviado em 1662 ao rei de Portugal. Assim depõe Leite (1943): “Foi companheiro desta missão o padre Manuel Pires”. Outro historiador português, José de Moraes, coloca o assunto em seu devido eixo: quem acompanhou Francisco Gonçalves, na epopeia de 1658, foi o padre Manuel Pires, o qual também integrou junto com seu correligionário Francisco Veloso a primeira entrada dos jesuítas ao alto Amazonas, em 1657.

Também, é imaginação histórica pensar que Manaus data de 1669, como é enganoso atribuir-se a Francisco da Mota Falcão a legenda de criador da fortaleza que teria originado a capital do Amazonas. Documentalmente, o que se sabe é que a ordem para a construção da fortaleza do Rio Negro (além das do Tapajós, Urubu e Madeira), partiu do rei de Portugal dom Pedro II, através da provisão régia de 15/12/1684, tendo por construtor Manoel da Mota Siqueira, filho de Francisco da Mota Falcão. Mas, de acordo com o historiador setecentista José de Moraes, “somente em 1689 ou 1690 foi iniciada e em 1693 a obra não era dada como de todo terminada”.

Para Bittencourt Filho (2012) a referência acima “é, dedicadamente, a melhor datação conhecida para marcar a fundação do fortim e, pois, de Manaus. Está documentado que Falcão iniciou a construção da fortaleza do Tapajós [Santarém/PA] e seu filho a terminou. Sobre a do Rio Negro não há nenhuma referência em fonte primária afirmando ou sugerindo que Falcão a houvesse começado. Para a datação do início da construção da fortaleza do Rio Negro temos de armar um mosaico da possível verdade com fragmentos de informações, catados aqui e ali. [Porém] Associar o ano de 1669 à implantação desse suposto acampamento fortificado importa em uma atribuição arbitrária – atribuição arbitrária porque não apoiada em nenhum documento que se conheça”.

As opiniões colocadas demonstram que o assunto “origem de Manaus” é bastante controverso e merece uma nova leitura. Numa iniciativa de transparência e adição ao debate, coloco aqui algumas questões simples: Primeira: em 1669, o único lugar estabelecido pelos portugueses na região do Rio Negro foi Santo Elias do Jaú (Velho Airão), junto à foz deste afluente do Rio Negro e há 100 km do sítio onde hoje é a cidade de Manaus; Segunda: em 1689 o jesuíta alemão Samuel Fritz, gravemente enfermo, desceu o Solimões em busca de tratamento. Foi acolhido em Saracá (atual Silves) e a seguir encaminhado para Belém, onde se restabeleceu. Não parou na barra do Rio Negro e em seu Diário não há sequer uma referência ao lugar. Talvez por que a povoação não dava sinal de existência. Terceira: no final de 1692, por ordem do padre João Filipe Bettendorff, então superior dos jesuítas da Amazônia, foram criadas duas missões: uma em Matari, no Rio Amazonas, a qual ficaria a cargo do padre Aluísio Conrado Pfeil; e outra, entregue ao padre João Justo de Luca, no Rio Negro. Em 1695, esta passou à responsabilidade dos padres carmelitas dando origem ao Lugar da Barra – raiz mais visível da atual cidade de Manaus.

Em História nada é definitivo e, assim, compete ao historiador buscar a verdade. Em artigo de 07/02/2013, o escritor gaúcho Luís Fernando Veríssimo reportando ao livro “A filha do tempo”, da ensaísta escocesa Josephine Tey (1896-1952), cujo título foi copiado de uma frase de autor desconhecido, nos brinda com essa joia de pensamento: “Os fatos que geram a História são alterados pela má memória, pela interpretação conveniente, pela ornamentação fantasiosa, por tudo que vem com o tempo depois do fato. Com o tempo o mito vira realidade e a realidade vira mito. Mas, é só dar mais tempo ao tempo que a verdade aparecerá”.

Dúvidas e vacilações… Inconsistência documental… Informações tendenciosas… Tais contradições, atentatórias da correta informação e da verdade epistemológica, também permeam o dia a dia dos que estudam e divulgam a História de Itacoatiara. Senão vejamos.

Um comentário do botânico João Barbosa Rodrigues, na obra Antiguidades do Amazonas (1892), segundo o qual a primeira missão jesuítica em terras do Estado do Amazonas “foi instalada pelo padre Antônio Vieira em 1655, na Ilha de Aibi, nas cercanias de Itacoatiara” induziu em erro alguns historiadores e até mesmo eu. Sucede que todo trabalho de pesquisa é exaustivo e ao mesmo tempo cheio de surpresas. Há mais de meio século, quando ingressei no mundo da escrita (1961), carência bibliográfica e ineficiência na oferta de meios materiais e operacionais eram traços dominantes. Muito mais que atualmente, pesquisar era muito complexo, a tarefa tinha o gosto da dificuldade. Ocupado em coletar dados sobre o histórico das missões e estabelecimentos portugueses na bacia amazônica, naquela oportunidade pude compulsar a obra supra de Barbosa Rodrigues. Dela colhi anotações e fiz incluir o respectivo extrato em vários livros meus (Silva, 1997, 1997b, 1998 e 1999).

Todavia, ao dar seguimento às minhas pesquisas no correr dos anos, constatei que a notícia que eu retransmitira é inconsistente, precisa ser reestudada. O ano de 1655 e a Ilha de Aibi parecem não se harmonizar com as origens da nossa cidade. Na literatura da Amazônia seiscentista e setecentista, jamais alguém cuidou desse assunto. No trato do tema, João Barbosa Rodrigues é voz isolada. Trata-se em suma de fonte insatisfatória sobre dados concernentes às primeiras entradas dos jesuítas na Amazônia interior. Segundo Berredo (1989), o padre Antônio Vieira, que ocupou em 1653-1661 o cargo de superior dos jesuítas da Amazônia, nunca pisou no solo do médio Amazonas. Em sua carta de 12/02/1661, dirigida à Câmara de Belém com a relação das missões criadas pela Ordem na região que hoje compreende a margem esquerda do Amazonas, entre os rios Nhamundá e Urubu, não há qualquer referência a Aibi. José de Moraes, citado por Leite (1943), refere: “Alguns autores dão mapas das missões e aldeias do tempo do padre Vieira. O limite onde chegou foi o Tapajós. Daí para cima, foram outros [missionários]”.

Noronha (2006), que em 1768 rastreou os lugares, vilas e aldeias de toda a calha do Amazonas, daí resultando o seu famoso “Roteiro de Viagem”, silencia a respeito. Acima de Itacoatiara há um acidente geográfico com título parecido ao termo Aibi, que Noronha o tem como “o quinto furo do Saracá” – o Lago do Canaçari. É o Igarapé do Aibu, também apelidado de Uxituba: corre paralelo ao Paraná do Arauató. Ambos ligam o Urubu ao Rio Amazonas.

Ainda aqui há um dado curioso: quase similar a Aibi é o termo Abuí, título dado a uma lagoa situada na Sub-região hidrográfica de Trombetas, a montante de Oriximiná, no Estado do Pará. Distante cerca de 300 quilômetros de Itacoatiara, essa região, entre 1871 e 1875, foi trabalhada por Barbosa Rodrigues. Designado pelo governo imperial a fazer explorações em Tapajós, Trombetas, Nhamundá e outros rios próximos da fronteira Amazonas-Pará, ele levantou os sítios arqueológicos na área que abrange a Lagoa de Abuí, em cujo entorno moravam índios da etnia Uaboi. Então, há que se perguntar: como coadunar a missão de Aibi (ou de Abui) à fisiografia de Itacoatiara? Tal povoação existiu? Não é aconselhável tratar esse assunto com ar de resto. Mas, tudo converge para anular a ‘proposta’ de Barbosa Rodrigues.

No início desta Introdução, reportei-me às correções pontuais feitas. Até o encerramento da primeira edição deste livro, em agosto de 2013, havia dúvidas quanto à origem da imagem da Santa Padroeira do Município e à condição ou qualidade de seus autores. (Em caráter terminativo, falarei mais detalhadamente a respeito no segundo volume desta trilogia e em “As pedras do Rosário”, outro livro meu ora em fase de conclusão). Ali ficou claro que ela é uma escultura de origem portuguesa e não obra de santeiros maranhenses. E agora ainda esclareço: dita imagem foi esculpida em cedro e não “moldada em gesso e papelão”, como equivocadamente eu afirmara noutros lugares (Silva, 1998 e 1999).

Este livro é de caráter histórico pouco convencional. Além de sumariar o período pré-cabralino, foca os iniciais 75 anos da bela trajetória de Itacoatiara, decorridos de 1683 a 1758. Engloba desde a chegada ao Rio Madeira do jesuíta Jódoco Perez, onde implantou a missão que deu origem à atual nobre cidade, aos subsequentes fatos que desaguaram na vinda do estadista colonial português Francisco Xavier de Mendonça Furtado, responsável pela translação do primitivo burgo para a margem esquerda do Amazonas, confluindo na construção da vila de Serpa. Finalmente, este tomo abre a trilogia “Itacoatiara 330 anos”, cuja obra completa reportará os quase três séculos e meio da cidade da Pedra Pintada, contados da criação do núcleo jesuítico até os dias atuais.

Indiscutivelmente, Itacoatiara foi fundada em 1683, ou seja, nesse ano a Cidade da Pedra Pintada ingressou na vida cristã e civilizada dos portugueses, como atestam vários autores seiscentistas e setecentistas, responsáveis pela historiografia religiosa, a crônica e a correspondência missionária, ricas em observações geográficas e etnográficas. Nos dois séculos seguintes, outros cultores da geografia humana da região confirmariam que Itacoatiara foi, a primeira vez, fundada no Rio Mataurá, um afluente do médio Rio Madeira.

Esclarecido o ano, restava descobrir o dia e o mês do evento. Até à véspera da comemoração dos 330 anos (2013), as datas ainda não batiam. Os dados conhecidos eram falhos e controversos. Os encontrados, que adotamos, resultaram de um trabalho difícil e de exaustiva compilação.

Num verdadeiro exercício matemático confrontamos diversas viagens de subida pelo Rio Amazonas, ocorridas em 100 anos do período colonial contados desde 1660, levando sertanistas, religiosos e autoridades – a exemplo dos padres Manuel Pires e Manuel de Souza em 1660 (89 dias entre Belém e Silves); dos padres João Ângelo Bonomi e José Barreiros: final de 1688-início de 1689 (83 dias de Belém a Mataurá); do padre João Filipe Bettendorff: 1691 (120 dias no trecho Belém-Urubu-Anibá-Madeira); do padre Samuel Fritz: 1691 (59 dias entre Belém e Madeira); do governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho: 1697 (77 dias entre Belém e Madeira); do sargento-mor Francisco de Melo Palheta: final de 1722 a meados de 1723 (102 dias de Belém até Mataurá); do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado: 1758 (91 dias entre Belém e Borba) – e aferimos que realmente, à época, as viagens de Belém ao médio Rio Madeira, descontadas as eventuais e necessárias paradas, duravam em média 88 ou 90 dias. Justo como afirmado por Bettendorff (1990) em outro lugar: “Para fazer nova missão na aldeia [dos índios] Iruri [os jesuítas] gastaram três meses de viagem sem perigo”.

Induvidosamente, o ano de fundação é 1683. Isso é definitivo. Quando a dia e mês, como acima referenciado, só foram encontrados após criteriosa avaliação afirmativa. É forçoso ressaltar que outros viajantes, além dos já citados, nos séculos XVII e XVIII fizeram o mesmo trajeto Belém-Rio Madeira, e os índices apurados do confronto dessas viagens pouco ou quase nada divergem da média apurada. Por conseguinte, o jesuíta Jódoco Perez deixou Belém em 09/06/1683 e, mesmo a despeito das interrupções na viagem para visitas pastorais, descansar e recolher víveres pode alcançar Mataurá no dia 07/09/1683 decidindo por fundar, no dia seguinte, a missão da qual resultaria Itacoatiara.

A criação do núcleo jesuítico, portanto, deu-se a 08 de setembro de 1683. Era Dia de Nossa Senhora da Luz e marcaria a primeira data histórica fundamental na vida cristã e civilizada da futura Itacoatiara.

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Os agentes políticos locais deveriam se espelhar no brilhante passado de Itacoatiara. Inspirar-se nele e, assim, poderiam contornar o presente e projetar um melhor futuro. Está passando da hora de debatermos a cidade que queremos. Poucas vezes, durante os últimos 30 anos, tivemos oportunidade tão clara de aprimorar o desenho da cidade que desejamos – desenvolvida, próspera, moderna. Dos últimos prefeitos, poucos estiveram empenhados em trazer ideias novas e em concretizar sonhos. Em face de situações difíceis geradas da inexistência ou da má aplicação de políticas públicas, nossa crença num futuro próspero e pujante já está quase arrefecendo e se espessando no desânimo.

Convém que se retome o bom caminho. Itacoatiara exige mais atenção de suas autoridades e respeito à causa pública. Entre as opções da boa política, que resultariam na otimização e na transparência da ação administrativa, estão a confiança, a harmonia e a cooperação entre administradores e munícipes. As principais marcas dos grandes líderes são iniciativa, coragem e probidade. A ordem geral é reunir forças e incentivar aos que amam prá valer esta cidade. Apoiar os sonhadores, chamá-los a adjutorar o seu progresso e à luta para tornar realidade os mais legítimos anseios de sua população.

Aproximam-se novas eleições. Este é o momento ideal para se construir agendas propositivas que apontem para mais e melhores serviços públicos, com gestões comprometidas em estimular, preservar e aprimorar avanços sociais, econômicos e culturais. Precisamos de concretude de ações, a exemplo do porto de Itacoatiara. Sua construção, ora em curso, é um passo importante para a concretização do processo de interiorização econômica do Amazonas. É uma obra portentosa e estratégica: depois de concluída e colocada em operação, certamente impactará o progresso de toda a Amazônia com reflexos positivos para a economia nacional.

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