Manaus, 11 de dezembro de 2023

Luiz Bacellar e sua poesia (IV)

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Pétalas do crisântemo

Luiz Bacellar foi o introdutor da cultura do haikai entre os poetas do Amazonas, isso nos anos 60 do século passado. Num primeiro momento ele adotou, na elaboração do haicai, a solução formal proposta por Guilherme de Almeida (1890-1969). O poeta paulista propunha a composição de três versos, dois de cinco sílabas rimados entre si e um intercalado de sete sílabas. No verso de sete sílabas intercalado, ele construía uma rima interna entre a segunda sílaba com a última tônica, como está nos seguintes versos do Bacellar:

o grilo fica tranquilo
ou
ao sol que de um caracol.

Depois o nosso poeta adotou a forma livre na linha de Matso Bashô (1644-1699), em verdade o maior divulgador desse formato lírico japonês no mundo. Aí o poeta usa ou o verso livre ou expresso em medidas não tão simétricas como está na proposta de Guilherme de Almeida, mas ao gosto de cada autor, longe da simetria que impeça o fluir espontâneo da emoção. O essencial é o significado lírico desse mínimo poema, sempre escrito em três versos.

Houve quem aproximasse o haicai de uma configuração Zen Budista da vida. Nada consta, no entanto, da prática budista em Bashô, mas, em verdade ele sofreu profunda influência dessa religião de origem chinesa adotada no Japão, nas raízes da sua história. O haicai enfim revela a interpretação da natureza e do tempo, e assim entrou no Brasil lá pelos idos de 1922. Luiz Bacellar inicialmente escreveu haicais na linha proposta por Guilherme de Almeida, a exemplo dos dois dos seus haicais mais conhecidos que vão a seguir:

Sempre perseguido
o grilo fica tranquilo
cantando escondido.

e

O brilho de mica
ao sol que de um caracol
no caminho fica.

O rigor formal, no entanto, em nada prejudica a fluência desses poemas nas mãos do poeta, mestre consumado das técnicas literárias.

Mas logo adota uma nova forma e revela:

Ah! o Satori21:
Matso Bashô, San-
to, me baixou na cuca

Como se vê esse haicai não parece de feição tão livre assim. Há o encadeamento do segundo com o terceiro verso na divisão da palavra San – to, e a sonora semelhança entre as palavras Bashô e baixou. Há ainda uma intenção de ordem matemática no texto. O primeiro verso possui quatro sílabas, o segundo cinco e o terceiro, seis sílabas.

No tempo do haicai o poeta vai olhando tudo em torno e registrando os fatos mínimos. Mas não poderia faltar em seus haicais a boa música:

Música de Mozart:
os dois passarinhos
do jardim respondem

Luiz Bacellar associou-se ao artista plástico e haicaista Roberto Evangelista (1946-2019), e escreveram um livro de haicais com o nome de Crisântemo de cem pétalas.

Em seguida o poeta pegou os seus haicais e editou num livro chamado Pétalas do Crisântemo, onde se encontra uma pérola, entre outras pétalas tão leves e belas dessa flor:

Da flor o orvalho
nas pétalas: tua face
depois que choraste.

Não lhe passa despercebida a paisagem da sua cidade. Caminhava a pé, raramente apanhava um taxi. Curtia Manaus e sua história. Quando a cidade cresceu e as distâncias impediram as boas caminhadas, o poeta era servido pela generosidade dos amigos, para se locomover.

Das suas andanças a pé, no entanto, ficou a seguinte paisagem:

Floresce o jambeiro
há um tapete róseo
no chão de janeiro.

Sua excentricidade de certo trouxe-lhe algum tropeço na vida. Muito de suas reações conduzidas por atitude espiritual eram tomadas por maluquice no julgamento rasteiro e prosaico do juízo comum. Alguém um dia achou de fazer uma faxina em seu apartamento, com a anuência do poeta. Quando a faxineira empunhou a vassoura para vasculhar pequena cantoneira afixada em uma das quinas da parede do seu quarto, o poeta pediu que ela não fizesse isso, ali morava uma aranha amiga, que o assistia na solidão das suas noites. Moral da história, a faxineira desistiu da tarefa que supôs ser de muita utilidade naquele momento.

Um dia o poeta dedicou a uma amiguinha o seguinte haicai:

Tatá é um foguinho
de flor flutuando no lago:
mureru poranga22.

Tatá, enfim, era uma cadelinha que fazia festa quando o poeta chegava, pulava e rodava a sua volta, sendo correspondida por ele que a chamava de bailarina, cheio de carinho. Era um bichinho muito sensível. Certa vez ela se meteu entre o capim para brincar e se encheu de carrapicho. Não teve jeito, no Pete shop a moça não teve outra saída senão tosquiar a sua pelagem alva. Recomendara que em pouco tempo os pelos seriam regenerados. A cadelinha Tatá ficou tão envergonhada que andava se escondendo detrás dos móveis da casa para ninguém vê-la assim. Ao ser encontrada viu-se que escorriam lágrimas dos seus olhos e se viu, também, que a Tatá era muito vaidosa.

O poeta conhecia essa história da sua bailarina Tatá.

Vejam se há outra imagem capaz de registrar com fidelidade um fato como o seguinte:

Cabeleiras verdes,
palmeiras ao vento:
mulheres correndo.

Críticos censuravam o poeta por abordar temas distantes e estranhos à paisagem do Amazonas.

Fala no seguinte haicai:

Chuva de verão,
cores: sorriso de flores
que as macieiras dão.

A mais séria crítica dispensada ao seu trabalho é de o poeta referir-se à macieira onde não se produz maçã. Acontece que ele valorizava uma visão global do mundo, onde viça num extremo a macieira, e, noutro o japiim ou xexéu, ou japó na indicação do poeta. Esse pássaro constrói a sua casa tecida de talos secos pendurados nos galhos das árvores. Forma como que um saco alongado igual a um pé de meia. Uma particularidade do japiim é que ele imita inúmeros pássaros e alguns outros animais da floresta. Por isso é considerado um pássaro poliglota ou pássaro da sabedoria. Há momentos que o seu canto adquire timbres de acordes arrancados de instrumentos de corda e arco, a repercutir na acústica das árvores quietas e das águas serenas dos igapós, em cujas margens o pássaro gosta de construir a sua morada.

O haicai diz assim:

Pé de meia só
num galho sobre o igapó:
Ninho de japó.

Dos elementos do mundo e do tempo a lua exercia sobre ele um poder singular. Em um dos seus sonetos ele diz;

Essa lua é dos loucos e eu pressinto
que vizinho já sou dessa loucura.

A lua exercia, portanto, verdadeiro fascínio sobre o poeta. Escreveu vários haicais sobre a lua. Até sobre uma lua que não dispensou nem uma eventual poça d’água num pátio, para refletir a sua vaidade:

Se mira na poça
de lama de um pátio
a lua vaidosa.

A despeito da persistência do seu esforço, Luiz Bacellar não encontrou adeptos à cultura do haicai no Clube da Madrugada. Em Frauta de Barro, seu livro de estreia, ele publicou dez haicais sem muita repercussão. A legião dos haicaistas de Manaus organizou-se bem mais tarde, por volta dos anos 2000 quando foi criado o Grêmio Sumaúma de Haicai. O grupo se consolidou nas quartas literárias, encontro que a livraria e editora Valer promoviam uma vez por mês. Luiz Bacellar era assíduo nas duas promoções e se tornou o maior entusiasta do grêmio. Suas reuniões aconteciam mensalmente no primeiro sábado, às 10 horas, nos altos das instalações da Valer. As reuniões constavam de intercâmbio de conhecimento e experiências com o poema. Os haicaistas Zemaria Pinto e Aníbal Beça proferiram palestras sobre o assunto em dias alternados.

O grêmio reuniu-se doze vezes, isto é, durante um ano de atividades. Mas foi, na opinião de Zemaria, tão efêmero como o haicai. Da primeira reunião participaram onze poetas, e, na última apenas dois, sendo um deles o Zemaria Pinto. Foi efêmero, mas implantou em Manaus o processo de criação e o hábito da leitura do haicai. De lá para cá a forma poética dessa miniatura japonesa passou a ser cultivada e apreciada por leitores de todos os níveis, especialistas em literatura ou não, abrindo janelas para o conhecimento do mundo e da vida. Fico pensando no papel do poeta e lembro daquele famoso verso com que Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, começa o Poema em Linha Reta:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada na vida.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Aí vejo ao contrário ao lembrar a vida de Luiz Bacellar. Jamais vi um poeta levar tanta porrada na vida que nem ele. Mas, também, não afrouxava. Estava sempre a postos para devolver a ofensa, tantas vezes com a ironia que não machuca, mas educa.

Por outro lado há muito eu não via uma pessoa sendo tratada com tanto carinho por seus amigos, até o fim. Verdadeiro milagre de Deus expresso nos versos miúdos do haicai:

Quando a grama oscila
a leve libélula
já levantou voo.

______________________

21 Satori é um termo japonês budista para iluminação, mas o seu significado literal é “compreensão”.

22 Poranga significa bonito, belo – Bem! – Nheengatu Rupi (Vocabulário Miri), de D. Frederico Costa, in Carta Pastoral, 2ª. Edição fac-similar, Manaus, 1994. É uma palavra ainda corrente no falar do amazonense.

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