Manaus, 9 de dezembro de 2023

Luiz Bacellar e sua poesia (VI)

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Sinfonia de palavras

O Quarteto é a obra mais representativa de Luiz Bacellar, por sua variedade temática e riqueza de construção poética. Escrita em versos de arte maior, tem a estrutura de uma sonata que o poeta classificou em tom de si bemol menor. Indica ainda que a sua sonata é para ser executada por um quarteto de sopro, flauta, fagote, clarinete e oboé. Mas, em face da majestade da obra, dir-se-ia que a sonata de Luiz Bacellar deveria ser indicada para orquestra, por ser a rigor uma sinfonia. Deve considerar-se também que a tonalidade de si bemol menor tem sido usada para expressar sentimentos pesarosos, tal como está na Sonata no. 2, da Marcha Fúnebre, para piano de Chopin, e o Concerto no. 1, para piano e orquestra de Tchaikovsky.

A sonata de Luiz Bacellar como verão ao longo deste ensaio, revela que o sentimento pesaroso foi a força motora do poeta na realização de seus versos nessa obra, por isso também concebido nesse tom. De sua parte a arquitetura do poema divide-se em quatro movimentos, compostos de trinta e três sonetos estróficos, quatro no primeiro movimento, treze no segundo, quatro no terceiro e doze no quarto. O poeta buscou o número 33, enfim, por ser um número mestre na numerologia, fato que, sem dúvida, além de outras implicações de sentido mágico, ficou reservado à informação do poeta ao elaborar o poema. Os quatro movimentos o poeta definiu como cartas. No primeiro movimento (alegro) está a Carta Sazonal, no segundo (andante) a Carta Pastoral, no terceiro (adágio) a Carta Lunar e, no quarto e derradeiro (largo) a Carta Náutica.

Uma última informação sobre o caráter musical do Quarteto, é que a sonata constitui peça musical para ser interpretada por instrumentos, diferente da cantata que é para ser executada pela voz humana. Quem sabe se neste caso não seria mais próprio ao poeta, em vez de sonata classificar a sua obra de cantata? Teria havido aí uma transgressão técnica ao qualificar o poema? Não, porque ao elaborar o poema o poeta só pensou na música instrumental, tanto que indicou os instrumentos do quarteto, e, ainda, porque as regras por vezes funcionam mais para serem transgredidas e modificadas com a experiência da vida.

Um exemplo disso é o fato observado na Nona Sinfonia de Beethoven (1770-1827). A obra exibe uma parte coral, no quarto movimento, que constitui o recitativo sonoro e sinfônico de um poema, a Ode à Alegria, de Friedrich Schiller (1759-1805). A despeito disso a obra está longe de ser uma cantata, embora seja a parte cantada a mais celebrada e ouvida dessa sinfonia. Assim agiu o compositor para melhor expressar o seu pensamento e a sua emoção, fazer-se entender melhor por seus ouvintes, e, também, pela aspiração que alimentava em seu espírito de compor uma obra com um texto de Schiller, que ele chamava de poeta imortal25. E não houve espaço melhor para satisfazer o seu desejo. O discurso musical completou-se com o discurso verbal do poema, com o que a obra se realizou integralmente. Outro dado pertinente é saber que a sinfonia no período Barroco e Clássico, era composta de apenas três movimentos. Foi Beethoven quem a ampliou para quatro e o primeiro a dotá-la de uma parte coral, que, por fim, influenciou e mudou a composição no mundo da música.

Em toda a sua obra Luiz Bacellar sempre valorizou a música. Era um ouvinte dedicado e competente. Jamais deixou de ouvir a boa música, ainda quando menino, tendo a sua iniciação musical sucedido desde o Curso Colegial antigo, feito no internato do tradicional Colégio de São Bento, em São Paulo, onde entrou aos 10 anos. Depois, em Manaus, aprimorou os seus conhecimentos ao secretariar o Conjunto de Câmera Orfeus, especializado no barroco alemão e italiano, de propriedade do seu pai.

Com relação ao barroco italiano há uma referência que acho oportuno lembrar como ilustração a esse assunto. O compositor e violinista Antônio Vivaldi (1678-1741), um dos mais notáveis nomes do período barroco, escreveu uma série de quatro concertos para violino e orquestra intitulados As Quatro Estações. Os concertos foram realizados levando em conta quatro sonetos sobre a primavera, o verão, o outono e o inverno. Os sonetos não são assinados e, por isso, seu autor ou autores são desconhecidos. Há a suspeita de que o próprio Vivaldi tenha sido autor dessas peças literárias, no esforço de aproximar a literatura da música. Os três primeiros concertos constam de dois movimentos, um movimento ocupando as duas quadras e o segundo, os dois tercetos dos sonetos. Só o quarto concerto, sobre o inverno, é que Vivaldi dividiu em três movimentos, compondo com as quadras o primeiro e o segundo movimentos e, com os tercetos o terceiro.

Com essa introdução que considero necessária ao entendimento do Quarteto de Luiz Bacellar, passemos à leitura do poema, sem perder de vista a natureza estrutural e formal da sonata, dominante ao longo do texto. Por fim não é fastidioso lembrar, especialmente levando em conta a experiência de Vivaldi, que o som está na raiz semântica dessas duas palavras. O soneto é um sonzinho e a sonata, um som grande…

Vários compositores já converteram em canção alguns sonetos estróficos da sonata do poeta. Mas os músicos ainda estão em dívida com ele. O Quarteto constitui material ou para uma sinfonia, poema sinfônica, cantata ou oratório. Talvez merecesse uma obra cênica envolvendo canto coral, solos, dança e ação.

No primeiro movimento o poeta celebra as quatro estações do ano, o tempo do plantio e do desabrochar das flores, do amadurecimento, da colheita dos frutos e do repouso da terra, por isso chamado de Carta Sazonal.

Abre esse movimento o soneto sobre a Primavera:

Eis que, da Primavera, o olente passo
já se ouve sobre o manto que a campina
despe; o olmo elegante a fronde inclina
à brisa recebendo em verde abraço.
Se entrechoca na fonte o cristal baço
do gelo liquescente; a peregrina
canção da cotovia matutina
se dilui pelo ar de eflúvios lasso.
Antes que Flora o matizado cetro
deponha e se umedeça o brando plectro
que entoa à páfia déa hinos e preces,
numa orgia de cores – infinita! –
tudo em torno de amor vibra e palpita,
só tu, meu coração, não reverdeces…

A despeito da festa infinita coroada com a orgia de cores da primeira estação do ano, só o coração do poeta não reverdece, anunciando desde aí o tom pesaroso do poema.

O poeta aprecia as quatro estações sem nenhuma intenção amazônica, desde a ambientação física, constituída da fronde do olmo entregue à brisa, o gelo gerado pelo inverno e com a primavera liquescente, o canto da cotovia. Não seria próprio delimitar o território do poema onde, por exemplo, no Amazonas, só existe uma estação, o verão que se divide em tempo chuvoso e menos chuvoso. As quatro estações do poeta são aquelas retidas em sua memória e como que cristalizadas como elemento clássico.

E assim vão as estações anuais do poeta e seu poema.

No Verão o poeta sente um arrepio de pressentimento e logo prova roçar-lhe a face

(…)
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai.

No Outono chegam os corcéis da chuva e

Os seus cascos de prata vêm rufando
branca manada em seu tropel, distantes
campos, prados, searas fecundando,
se espojando em arroios espumantes.

Na paisagem do inverno fixada no último soneto deste movimento o poeta registra um fato dramático:

(…)
súbito rasga a tarde áspero grito:
no ar mergulha o falcão. Com um pombo morto
preso as garras se eleva no infinito
como se eleva um pensamento absorto

Gostaria de chamar a atenção para dois elementos assinalados nesses versos. No primeiro a sonoridade determinada pela sucessão do atrito entre as letras r, a, g, i, t, numa aliteração que dota o verso de maior aspereza ao anunciar o ataque do falcão ao pombo indefeso.

Outro é o senão encontrado no verso

no ar mergulha o falcão. Com um pombo morto,

aparentemente quebrado com a aproximação das palavras com um. Rigorosamente esse encontro de m e u nas duas palavras formaria duas sílabas poéticas e o decassílabo ficaria com onze sílabas, situação jamais permitida por Luiz Bacellar. Em verdade essas duas palavras elidem, especialmente na fala brasileira, com a abstração do m. Os românticos encontraram uma solução para essa escrita assinalando o fato com um apóstrofo da seguinte forma, nesse caso: co’ um.

Almeida Garret escreveu no romance de O Conde d’Alemanha:

Call’-te, call’-te, lá infanta,

para preservar o ritmo dos redondilhos com que é escrito o seu poema.

Castro Alves escreveu em Hebreia que é em decassílabos:

Pomba da esp’rança sobre um mar de escolhos!

Luiz Bacellar apenas conservou a prática evitando a presença desagradável do apóstrofo. Os seus versos possuem essas frequentes soluções técnicas, consagradas pelo uso.

No segundo movimento, composto de 13 sonetos, também chamado de Carta Pastoral, a obra se aproxima ainda mais da forma sonata, envolvendo várias ideias e temas diferentes, por vezes conflitantes. O pastor aludido é aquele que pastoreia não apenas as ovelhas, mas também as almas, a quem é endereçada a carta. O tema da morte com o tema da rosa, do coração, dos mistérios do Grau Supremo e do Grau Sublime, dos corcéis de crinas em fogo conduzindo o carro da morte que veio para levar o poeta, do rio e da chuva, até chegar a noite com o sono e o repouso. Tudo isso num processo de desenvolvimento temático, com imagens às vezes colidentes, sempre nos moldes da forma sonata.

A morte há de chegar, seu frio beijo
de lábio em lábio pousará. Silente.

Em seguida o poeta implora às vozes que lhe chegam vibrando com as notas da caridade, da harmonia e da fé:

vinde e purificai-me o coração.

Figura que anuncia a temática da rosa, de brilhos claros, de perenes lumes:

Rosa do mar! Se o mar tivesse rosas…
Rosa do céu? Se o céu também tivesse
e uma estrelar corola compusesse
de fluidas lactescências vaporosas

Brilhos de mar e céu em pleno verão.
Mas, de repente ele depara com uma visão escatológica:

Puxado por corcéis de crina em fogo
veio o carro da morte me levar
e esse ciclope cego num regougo
quis com o punho gelado me afogar.

Faz referência à lenda do ciclope Polifemo que devorava os homens que apareciam em sua ilha, no tempo da Odisseia. Esse gigante sanguinário só possuía um olho no meio da testa. Ulisses então achou um meio de inutilizar essa figura feroz. Ofereceu a Polifemo um tonel de vinho, com o que o monstro se embebedou e dormiu. Ulisses e seus companheiros aproveitaram para tomar de uma vara e de longe cegar o ciclope.

Mas o tema da rosa domina todo este movimento que é composto de treze sonetos. É um tema cíclico da poesia no mundo. No Mundo Ocidental possui um significado que transcende a sua disposição de rainha dos jardins. Nós conversávamos sobre esse assunto e a síntese do diálogo leva ao período seguinte.

Na civilização clássica antiga a rosa era consagrada a Afrodite, a deusa do amor, e teria nascido do sangue de Adônis, o deus da beleza.

Talvez por isso tenha ganhado o sentido do sexo feminino. Nos primeiros tempos da nova era, dentre os seus muitos significados, a rosa vermelha para os cristãos primitivos representava o sangue derramado e as chagas de Cristo. Ou o cálice que recolheu o sangue do Salvador. De forma geral a rosa vermelha era o emblema do amor divino.

Na Idade Média a rosa era uma qualidade das virgens e, por isso, também símbolo de Maria. O rosário, formado por um grupo de orações destinado a honrar Nossa Senhora, como forma de meditação espiritual, é uma palavra derivada de rosa, rosário, um conjunto de rosas.

Sobre o mistério das rosas, ainda, guarda-se a versão de um fato parecido com fantasia, de tão maravilhoso que é.

Transcorriam as últimas décadas do século XIII e as primeiras do XIV, época de D. Diniz, Rei de Portugal. Nos seus 64 anos de vida, esse rei legou uma obra até hoje lembrada no dia a dia dessa grande nação. Mas o episódio recordado neste caso aconteceu com a sua esposa. Ele era casado com a virtuosa princesa D. Isabel, filha de D. Pedro de Aragão, que por seus atributos de coração e de espírito logo atraiu a veneração de todos. O povo a considerava um anjo bom. Era uma santa pelo bem que dispensava aos pobres. Depois que ela morreu sua memória foi elevada pela Igreja à glória eterna, beatificada em 1516, e canonizada em 1625, com o nome de Santa Isabel de Portugal.

(Continua na próxima semana)

25 LOCKWOOD, Lewis (1930), Bethoven: música e vida, (681 páginas), tradução de Lúcia Magalhães e Graziella Somaschini, CÓDEX, São Paulo, 2003.

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