Manaus, 1 de dezembro de 2023

O Evangelho verde de Francisco

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Adriana Dias Lopes
*Adriana Dias Lopes

Na encíclica Laudato Si (Louvado Sejas), o papa põe a Igreja Católica no centro de uma das questões unânimes de hoje – a preocupação com o ambiente

Não espanta que o primeiro papa a emprestar o nome de São Francisco de Assis, o frade de sandálias que pregava com os pássaros e cantava para o irmão Sol e a irmã Lua, dedique uma encíclica aos cuidados com o ambiente. É o caso, na leitura das 192 páginas da Laudato Si, Louvado Sejas, de Francisco, o jesuíta habituado às armadilhas do peronismo argentino, de entendê-la de modo um pouco menos ingênuo. A encíclica de Mario Jorge Bergoglio é uma peça política. Sua intenção primeira, além de atrair simpatia por meio de um tema quase unânime, os desmandos do ser humano na antessala do aquecimento global, é tacar fogo na Conferência sobre o Clima de Paris, em dezembro próximo, da qual sairá um documento para substituir o Protocolo de Kyoto, caducado depois de dez anos, e que estipulava as metas de emissão dos gases que provocam o chamado efeito estufa. Os Estados Unidos não o assinaram, mas vão pôr sua rubrica agora, sobretudo porque Barack Obama, em fim de mandato, nada mais tem a perder. “As encíclicas não são feitas no vácuo”, diz o arcebispo de Miami. Thornas Wenski. “Elas têm longa tradição de aplicar os ensinamentos morais do catolicismo a problemas sociais contemporâneos, ” As primeiras encíclicas de um papado, longas meditações sobre algum tema de extrema relevância, costumam ser consideradas programáticas para o resto do pontifica do. A Laudato Si é a carta de intenções de Francisco. Diz dom Sergio da Rocha, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: “A importância deste texto vai muito além da Igreja”.


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“A desigualdade não afeta apenas os indivíduos, mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais (…). O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da Terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações (…) A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. ”

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Não há, nas palavras de Francisco divulgadas com pompa e circunstância na semana passada, a virulência contra o livre mercado de seus dias inaugurais como Vigário de Cristo. Em sua exortação apostólica, a Evangetii Gaudium (A Alegria do Evangelho), de 2013, ele afirmou que “enquanto os problemas dos mais pobres não forem radicalmente resolvidos através da rejeição da absoluta autonomia dos mercados e da especulação financeira, e atacando as causas estruturais da desigualdade, não encontraremos solução para os problemas do mundo”. Agora não, Francisco foi menos incisivo, mais cauteloso, nitidamente sensato. A Laudato Si poderia ter sido escrita pelos cientistas que compõem o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), vencedor do Nobel da Paz, embora depois tenham mergulhado em sucessivos escândalos de malversação de estatísticas a serviço de uma causa nobre.

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outros fatores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases de efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos, sobretudo, por causa da atividade humana.” Pode parecer, numa leitura apressada, que Francisco acena aos céticos para quem o aquecimento global é, sobretudo, resultado de ocorrências milenares da natureza (o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas ele rapidamente dá o salto que leva a encíclica a andar de mãos dadas, como o irmão Sol e a irmã Lua, com aqueles que põem no homem a culpa pelos estragos na Terra. Segundo o mais recente relatório do IPCC, o ser humano tem 95% de responsabilidade sobre as alterações climáticas, e a razão maior é a produção de CO2, atalho para o efeito estufa. Nas últimas décadas, apesar de recuos provocados por descuidos e falsificação de dados científicos, nenhum assunto ganhou unanimidade e tanta certeza quanto a necessidade de frearmos a toada de danos ambientais no mundo industrializado.

Elaborar uma encíclica com esse tema foi a maneira encontrada por Francisco, formado em química numa universidade de Buenos Aires, para dizer que a Igreja Católica é sempre filha de seu tempo. Não seria exagero dizer que a Laudato Si está em pé de igualdade com a Rerum Novarum (Das Coisas Novas), de 1891, o grito de Leão XIII pelos direitos trabalhistas em um mundo reinventado pelas fábricas no apogeu da Revolução Industrial. “Francisco pode encaminhar o que muitos cientistas e líderes nacionais não conseguem fazer”, diz o que o teólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É esse o objetivo do papa argentino, que sabe ser humilde quando o momento exige postura menos arrogante, embora não menos ambiciosa.

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TEMPOS DE DIALOGO – Reunião sobre a relação das mudanças climáticas e a pobreza, conduzida pela

Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. A instituição alimentou a encíclica.

“Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum.”

É extraordinário ler um documento seminal para a Igreja Católica que não tem vergonha de admitir sua incapacidade de tudo resolver, reconhecendo as fontes de informações científicas como cruciais. Já não se queima um Giordano Bruno (1548-1600) por defender o heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543). Galileu Galilei (1564-1642) foi redimido, e o pedido de desculpas ao astrônomo italiano feito por João Paulo II em 2000 hoje está estampado no salão principal da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. Ali, em abril passado, foi organizada uma conferência sobre mudanças climáticas e pobreza que serviu de rascunho para encíclica. Os líderes religiosos sentaram-se à esquerda. Os cientistas, de frente para os prelados. No pódio central, logo abaixo do busto de João Paulo Il, emoldurado pela absolvição de Galileu, estava o secretário-geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki-moon. Foi uma cena afeita aos novos tempos de diálogo, este que agora culminou na encíclica de Francisco. Há grandeza em usar a ciência para uma carta religiosa. Grandeza que chega a faltar ao IPCC, antes de admitir seus deslizes, entidade que muitas vezes transformou ciência em religião, a ponto de rechaçar inclusive prêmios Nobel que apenas pediam mais discussão e menos peroração, que pediam resultados à frente de convicções, por mais honrosas que fossem.

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“Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns se limitam a propor uma redução da natalidade (…). Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo atual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo.”

É prematuro e errado concluir que a Igreja tenha posto, como nunca antes, as evidências sempre acima dos dogmas na Laudato Si. Não é assim, e é da natureza do catolicismo que não seja. É natural, portanto, que Francisco condene a contracepção e o controle da população como estratégias apropriadas para conter os parcos recursos naturais da Terra. A Igreja, nesse ponto, vai contra o senso comum, até mesmo contra o bom-senso, e parece não enxergar que uma população de 10 bilhões de pessoas em 2050, como se estima, será insustentável. Mas não cabe a uma encíclica resolver os problemas do mundo no avesso de suas convicções. Cabe a ela demarcar os limites da fé católica, questionar opiniões consideradas erradas, encorajar evoluções na Igreja e determinar prioridades. E, como efeito também desejado, provocar discussões. Jeb Bush, que na semana passada se apresentou como pré-candidato republicano à sucessão de Obama, estrilou, e era esperado que estrilasse, como católico fervoroso e avesso ao controle ambiental proposto na encíclica. “Espero não ser castigado por dizer isto, mas minha política econômica não vem dos meus bispos, dos meus cardeais ou do meu papa. ”

Um dos pastores intelectuais da Igreja, Santo Agostinho (354-430), que está entre os mais fascinantes filósofos da civilização, refletiu incansavelmente sobre a origem do mal. “E, uma vez que Deus, sendo bom, fez todas as coisas, donde vem então o mal?” A conclusão parcial de Agostinho: ”Deus não é o autor do mal, porque é o autor de todo o bem. O mal é apenas uma deficiência, uma privação do ser, decorrente do uso equivocado de um bem – o livre-arbítrio”. Sem a mesma elegância teológica, mas com magnífica e bela clareza, a Laudato Si tem também esse poder de atrair interesse e fazer história, iluminando um impasse de nosso tempo, a respeito do qual a Igreja não pode silenciar.

“A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante de uma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos alegremos com esses progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem essas novidades incessantes, porque ‘a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu’. (…) cada época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e ‘cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso de seu poder’. ”

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*Jornalista. Articulista da Revista Veja. Texto na edição nº 2431, de 24/06/2015.

 

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