Os poetas elegem os seus assuntos e a eles se devotam com fervor. Há casos em que os temas se lhes impõem de tal forma que acabam por marcá-los a vida inteira. Castro Alves herdou o cognome de poeta dos escravos em consequência da luta a que se entregou, de corpo e alma, inteligência e talento, na campanha pela abolição da escravatura no país. Há outros que a consagração de uma única peça foi capaz de identificá-los para sempre, tal como sucedeu a Júlio Salusse com o soneto Os cisnes, e Annibal Theophilo, com A cegonha. Boca do inferno era o nome de guerra de Gregório de Matos, apelido aplicado pela sociedade baiana da época, face à crueza com que o grande barroco brasileiro exercitou a verve satírica.
A poesia, portanto, possui os seus mistérios e os seus caprichos. Manuel Bandeira, numa visão romântica, ensina que não compunha um poema quando ele queria, mas quando ela, a poesia, determinava. João Cabral de Melo Neto, ao contrário, programava os seus poemas e os seus livros, como que retendo o entusiasmo estético entre os limites de um construtivismo racional. Edgar Allan Poe confessa que ao realizar O corvo, um dos mais simbólicos poemas da literatura universal, usou de metodologia cartesiana para incitar no leitor os sentimentos agitados e fixados nessa verdadeira obra-prima do engenho humano. O nosso genial Jorge de Lima compôs poemas inteiros durante o sono e, sabendo disso, mantinha junto à cama papel e caneta, como que para salvar o texto ao acordar, assim escrevendo grande parte do Livro de Sonetos e da epopéia cíclica Invenção de Orfeu.
O poeta amazonense Max Carphentier também foi possuído pelo seu tema, na revelação de uma obra marcada pela paisagem amazônica, em que a região vai recebendo, tal como as bênçãos das chuvas, a intervenção do espírito, sem nenhum sinal de panteísmo, mas fundado em consciente postura cristã. Assinalada com acentuado tônus místico, resultante, sem dúvida, das tendências de sua personalidade, a obra essencialmente poética de Max Carphentier, em prosa e verso, traz esse caráter desde sua estréia em 1975.
Para perceber os rumos de sua caminhada basta que se reflita sobre os títulos dos seus livros, desde Quarta Esfera, passando por Vitrais da Busca, O Sermão da Selva, Orfeu do Nazareno, Fragmentos de Luz, Tiara do Verde Amor, Nosso Senhor das Águas, Nossa Senhora de Manaus, até chegar neste a que me refiro agora, Teresa de Ávila – O Êxtase da Muralha.
É de se indagar: Em que recantos da alma se definem o amor humano e o amor divino? Há, por acaso, essas duas formas de amor? Não seria o homem capaz de chegar, através do divino ao amor humano, e do humano ao divino? Não seria o amor geral o caminho único e definitivo capaz de nos levar aos domínios de Deus?
Vejam bem que não me atenho, ao escrever este texto, à postura dos santarrões. O que me vem à mente é o episódio da pecadora que o Cristo salvou do apedrejamento. Ela muito amou e Ele determinou que ela seguisse a sua vida e não mais pecasse. Vejam que o Mestre não determinou que não mais amasse.
As perspectivas entre o divino e o humano oferecem acontecimentos maravilhosos, como os que marcaram a vida de Santa Teresa. Jovem, vitimada por um mal desconhecido, prostrou-se como se tivesse morrido. Dias depois, recobrou os sentidos. Voltou à vida protegida pelo amor do pai carnal que não aceitava que ela estivesse morta e, assim, impedira a consumação das exéquias da filha. Após este episódio Teresa d’Ávila transmudou-se em outra pessoa. Saiu pelo mundo a trabalhar a serviço do amor. Durante peregrinação pelos caminhos da velha Espanha, no exercício da expansão dos Carmelitas, sob a bênção fraternal de São João da Cruz, amealhou larga experiência. Ao subir a uma carruagem, surpreendeu um cavalheiro a apreciar-lhe os belos pés, ao que a Santa advertiu dizendo: olhe bem para eles, porque você nunca mais os verá em sua vida. Santa Teresa gostava da boa cozinha e afirmava que se pode encontrar Deus também entre as panelas. E quando morreu de verdade a ala do convento onde foram inumados os restos mortais da Santa, foi invadido por uma aura perfumada de rosas, ao longo de muito tempo.
Acontecimentos na adolescência aproximaram Max Carphentier de Santa Teresa. Paixão inexplicável. Na maturidade atravessou o oceano, tem estado em Ávila, todo ano vai à Espanha e, numa noite dessas, concebeu este Teresa de Ávila – O Êxtase da Muralha, o grande poema de sua vida, obra de poeta e místico, tocador de mandolinas nos arredores da Praça Maior, nas noites encantadas de Salamanca, sob as vestiduras de um autêntico Jogral de Santa Teresa.
Manaus, Chácara Lili, 26 de maio de 2003.