
*Mario Ypiranga Monteiro
A Batalha Naval de Itaquatiara
A história do Amazonas às vezes concede tréguas ao sério menos tendem para o divertido. A batalha naval de Itaquatiara foi um lance quase picaresco, não pelo que de fato representaram as forças nela envolvidas, mas pelo seu resultado final. Estávamos atravessando um desses períodos de agitação em que vez por outra se mete o Brasil para aliviar a tensão elástica de sua política nefasta, quando o partido de baixo achou que era tempo de interferir na política do partido de cima. O partido de baixo era representado pelo general Bertoldo Klinger, aquele autor de um novo processo ortográfico em que somente ele escreve, e o partido de cima mandava na pessoa do falecido Getúlio Vargas. A revolta começou em São Paulo e logo se espalhou, criou ambiente e veio estourar na fortaleza de Óbitos, aquela pacata fortaleza que só tem servido para experimentar os nervos dos nossos soldados e civis. Comandava a fortaleza o civil Alderico Pompo de Oliveira, comissionado no posto de coronel pelo general Klinger. Ainda não se sabe bem como a fortaleza se rendeu ao coronel Pompo. Talvez tivessem os soldados aderidos placidamente, pois de outra maneira não vejo como um formidável reduto se tivesse deixado cair nas mãos de um aventureiro. O fato é que dali veio a força que deveria tomar as cidades ribeirinhas e ocupar Manaus. O que acho de infantil nessa tentativa é a maneira como se dispunham as coisas: dois inofensivos navios mercantes eram aprisionados pelo forte e armados em guerra. Esses navios, em atitude belicosa, vinham, conforme as notícias alarmantes espalhadas na capital, com disposições para varrer a ferro e fogo a capital, se Manaus resistisse aos revoltosos. Nessa época, fermentavam os ódios e as vinditas, e tudo era possível, dado o estado de ânimo dos paulistas e dos seus seguidores. Mas não vejo de que maneira podia os revoltosos manter por muito tempo a situação, nem meios de resistir. Todavia, os navios Jaguaribe, pertencente à firma Pereira Carneiro & Companhia, do Pará, e Andirá, da Amazon River de então, armados em guerra desciam para Manaus, dispostos a fazer valer as opiniões do general Klinger. Em Manaus, por essa época, os boatos eram os mais alarmantes, e talvez fossem esses boatos que determinaram as medidas postas em prática para deter os revoltosos. De qualquer maneira, dizia- se que os referidos navios haviam recebido equipamento completo para arrasar qualquer cidade que se mostrasse hostil a um desembarque. Que os possantes canhões da fortaleza haviam sido desmontados e transferidos para bordo. Que a força não constava somente dos soldados revoltados e dos civis Arquimedes Lalor e Alderico Pompo de Oliveira.
Alguns desses alarmantes boatos provaram mais tarde que o povo não é tão ingênuo como se pensa vulgarmente, e os navios estavam mesmo armados com os Krupp do forte, pelo menos quatro. E tudo quanto se afirmava a respeito da rendição de Parintins foi exato. Na época era interventor federal o capitão-tenente da armada Rogério Coimbra e secretário de estado do Dr. Waldemar Pedrosa, em exercício. A 21 de agosto recebia o Dr. Waldemar Pedrosa um telegrama em que acintosamente intimava o governo a render-se. Continuo considerando aquele movimento uma espécie de farsa, pois que Lalor, Arquimedes Lalor, o visionário comandante da rebelião de Óbitos, regressara não fazia muito dos Estados Unidos da América do Norte, terra das fitas e das mentalidades excitadas. Eis o telegrama, estampado nos jornais de Manaus, da época:
The Amazon Telegraph Company, Limited
(Cabo Sub-Fluvial do Amazonas)
Carimbo
Aviso Óbitos
19/8/32
N.°4
19
Cópia
Recebido 21. 32 RMO
Interventor dr. Pedrosa
Manaus
O cel. Pompo emissário do general Bertholdo Klinger intima a este governo a se render ao forte de Óbitos que já se acha em seu poder a três dias ocupado pelas forças do referido general e se assim acontecer evita-se a enviar suas embarcações completamente aparelhadas com ordens terminantes para bombardeio dessa capital. Será conveniente que s. exc. evite esta sangrenta medida, porque as ordens que executa são enérgicas.
Cel. Pompo.
Não satisfeito, o coronel comissionado expede outros telegramas, de base de Óbitos, para o comando do 27.0 BC e para o interventor amazonense:
Carimbo
Aviso Óbitos
19/8/32
N.° 2.
Data
19
Cópia
Recebido Sa às 21.07 RMO
Major Comte 27 BC e Interventor
Manaus
Boletim espalhado na cidade de Óbitos depois tomada Forte e todas repartições e posições da cidade. Ao povo de Óbitos. O coronel Pompo, comandante das tropas revolucionarias de Óbitos, comissionado e enviado especial do Snr. General Bertholdo Klinger, comandante em chefe do Exército brasileiro Constitucionalista, lançando o presente boletim ao povo desta cidade, com a franqueza e lealdade própria do soldado que coloca honrarias e postos sob os pés, para olhar e encarar a defesa e integridade da pátria sente-se orgulhoso em dizer que o movimento ora levantado neste rincão belíssimo do Amazonas, está vitorioso porque, não só, conta com adesão incondicional de todo a maioria da Armada Nacional Exercito Brasileira, como também, não se trata de um movimento político, porquanto, mais alto que a política, mais alto que o interesse do mando, mais alto que o desejo de perpetuidade nos cargos públicos fala-pela boca do são patriotismo a necessidade do pais voltar ao regime da lei, e voltará! Apenas, calma, reflexão e ponderação pedimos aconselhamos ao povo desta boa e hospitaleira terra esteja o povo tranquilo que tudo há de ser resolvido dentro das melhores maneiras, sem estrépitos inúteis e sem fuzilaria desnecessária. O povo que se congregue, o povo que se levante e o povo que venha lutar pela constitucionalização do país para salvar a honra deste Brasil amado e desta pátria querida! Avante brasileiros, que a frente desta luta sacrossanta e digna estão brasileiros civis e militares de envergadura moral invejável de caráter impoluto e de honra intangível! Para frente! Viva o povo paraense que ainda se acha coagido. Viva o Amazonas que se acha da mesma forma. Viva S. Paulo Viva o Brasil.
Cel. Pompo.
Carimbo
Aviso Óbitos
19/8/32
N.1.
19
Cópia
Recebido Sa às 9.06 por RMO
Cmte 27 BC, e Interventor Waldemar Pedrosa.
Manaus.
4 remeti ao Cel Guasque Belem seguinte aviso: Não podemos atender telegrama e nem receber ordens porquanto o Norte desta cidade achase em poder das forças do General Bertholdo Klinger comandada pelo Cel Pompo salvo os colegas dai queiram nos acompanhar embora já no fim da jornada vitoriosa quando a oficialidade deste Forte acha-se toda solidaria com a nossa atitude com exceção do Comte Arruda estaremos por aqui prontos para recebe-los amigavelmente ou a bala.
Cel Pompo.
No dia 21 a lancha Diana é aprisionada pelos rebeldes. Arquimedes Lalor, que comandava a expedição fluvial, ocupa Parintins e dali ameaça Itaquatiara. Em Manaus a situação era de pânico. Famílias in- teiras abandonavam a cidade. Principalmente aquelas que já haviam experimentado um bombardeio precipitado como o de 1910. Todavia as medidas foram tomadas imediatamente, com o fim de não mais impe- dir o ataque a Parintins, ou mesmo de Itaquatiara, cidade que não podiam resistir nem a um ataque de civis armados de rifles, mas demorar, quanto possível, a marcha para Manaus. As notícias que corriam então eram as mais desencontradas e de Itaquatiara o êxodo era maior para Manaus e outros refúgios próximos. Gente houve que se internou pelo mato, onde passou dias. Dizia-se que Parintins resistira e fora arrasada, fuzilados os principais elementos da administração etc. Diante da gravidade da situação, o interventor em exercício, Dr. Waldemar Pedrosa, reuniu em Palácio o major Tavares Guerreiro, comandante dos 27 BC, o capitão de fragata Lemos Bastos, titular da Capitania dos Portos, desembargador Emiliano Stanislau Afonso, chefe de Polícia e o comandante Braz Dias de Aguiar, chefe da Comissão Demarcadora de Limites, e dessa conferência resultaram as primeiras medidas postas em prática para salvar Itaquatiara de uma investida. Verdade é que, se a força daqui embarcada a bordo do Curuçá armado em guerra tivesse que enfrentar Arquimedes Lalor, teria sido um fracasso, uma sangrenta carnificina, pior do que a que acontecera com o Jari, em águas amazônicas, anos antes. A força constava de cinquenta guardas-civis e trinta praças da Comissão de Limites, sob o comando do tenente Antônio Pojucan Cavalcante. O contingente era comandado pelo capitão Jônatas Correia, gordo e baixinho, muito hábil e falante, então chefe de gabinete do Interventor, e como ajudante o capitão José Marques Galvão, antítese do primeiro, magro e alto, da Polícia Militar. Tomavam parte naquele simulacro de expedição militar os 2.º tenentes Luís Gentil e Zeno Ferreira e o brigada Pais Pinto, do 27.0 BC. A força do exército aquartelada em Manaus estava desfalcada e não podia tomar parte na expedição sem deixar a cidade desguarnecida. Havia saído daqui, dias antes, o vapor nacional que depois de uma ação enérgica em águas amazonense, teria um triste fim na segunda guerra mundial. Aquele navio do Lóide Brasileiro levara um contingente do exército para o sul, quando teve conhecimento do que se passava em Parintins e Óbitos. comandante resolveu regressar a Manaus, e nesse regresso encontra a expedição militar. Também o navio nacional Ingá, que havia partido de Manaus, regressava a toda força. Os três navios voltam para Manaus e aqui então se arma uma esquadra mais poderosa, em navios e homens, capaz de fazer frente aos rebeldes. No dia 22 zarpa de Manaus a esquadra, composta dos navios Baependi, Ingá, os maiores, e das gaiolas rio Curuçá, rio Aripuanã, rio Jamari, e da lancha Iris. A esquadra era comandada pelo capitão de fragata Antônio Lemos Basto, que tinha sob as suas ordens o capitão de corveta Alfredo Miranda Rodrigues, capitães-tenentes Jorge Ferreira Landim e Antônio Pojucam Cavalcante. Seguiam na qualidade de médicos os Drs. Antônio Gomes e Alexandre de Carvalho Leal, este como voluntário.
Em Manaus a situação não era menos calma. Trincheiras haviam sido abertas, na praça em frente ao quartel da Polícia Militar, na Avenida de Eduardo Ribeiro e em outros pontos estratégicos, e ocupados por forças daquela corporação. A cidade movimentava-se de manhã à noite com os boatos, as notícias incoerentes. Dizia-se, por exemplo, que o couraçado Floriano aderira aos rebeldes e vinha de Belém para Manaus com o fim de proteger o desembarque, Nesse interim o Dr. Waldemar Pedrosa recebeu uma comunicação do interventor Magalhães Barata avisando que o navio Comandante Portela, armado em guerra, rumava para Óbitos para combater os sediciosos. E soube-se também que o Floriano, então ancorado em Belém, rumava para Manaus, de ordem do governo federal, trazendo a bordo o comandante Rogério Coimbra, interventor federal e o tenente Emanuel Morais, que foi prefeito de Manaus, e um dos nossos melhores prefeitos, autor da mudança da estátua de Tenreiro Aranha para a Praça da Saudade e grande fomentador da agricultura em Manaus, principalmente do plantio de abacaxi.
As coisas estavam nesse pé, quando no dia 24 de agosto os boatos aumentaram, tornaram-se insistentes e se transformaram em notícias coerentes, oficiais: havia terminado tudo com uma batalha feroz em frente da cidade de Itaquatiara. Navios no fundo e muita gente morta e ferida. Mas a legalidade triunfara. O Dr. Waldemar Pedrosa recebera um telegrama do comandante Lemos Basto, que a imprensa publicou:
Senhor Interventor Federal e Capimar. Manaus. Urgente. Embora constrangido sacrifício vidas ainda que patrícios nossos comunico ambos navios revoltosos postos rebeldes a pique força meu comando em frente Itaquatiara. Temos um ferido leve. Estou contato gente Itaquatiara, onde vou atracar, tomar informações afim decidir que fazer. Recolhendo náufragos, às treze e quinze minutos.
Resumindo os acontecimentos do dia 24 de agosto de 1932 em frente ao porto de Itaquatiara, teremos que dizer o seguinte: na manhã desse dia deu-se o contato entre as forças legais e os rebeldes, partindo o ataque do navio Andirá. Esse contato se verificou de Itaquatiara, contra o vapor nacional Baependi, que seguia na frente. Imediatamente o comandante manobrou de regresso, sob a fúria da artilharia do Andirá a fim de pôr-se ao lado do Ingá. Foi nesse regresso, quase uma fuga em frente ao inimigo que assim pensou que se deu o primeiro episódio daquele dia: o Baependi não podia parar para mandar uma mensagem de resistência a terra, razão por que ao passar em frente ao porto, arriou um escaler. A velocidade que levava não permitiu que o escaler baixasse normalmente, por isso que afundou com os tripulantes, sendo estes salvos ao cabo de uma hora de luta contra a corrente forte daquele trecho, por uma lanchinha vinda de terra. Contudo, os defensores de Itaquatiara receberam a mensagem, que era de resistir, resistir sempre. Os defensores de Itaquatiara naquela altura eram os tenentes Álvaro de Sousa e Albuquerque, do 27.0 BC, Francisco Júlio da Polícia Militar, capitão Gonzaga Pinheiro da Polícia Militar, então prefeito local e o vigário padre Pereira. A estes se juntaram vários cidadãos bem
dispostos, o comerciante Antônio Costa e o finado promotor público Dr. Gaspar Maia. As treze horas, sob uma chuva impiedosa, os navios dos rebeldes estacionavam em frente ao porto e dispunha-se em ordem de combate, sem deixar de fustigar o Baependi. Mandou Arquimedes Lalor um emissário com um ultimato para rendição no prazo de duas horas. Não aceitando o ultimato, o capitão Gonzaga Pinheiro, fardado e armado, fez-se para bordo do Andirá, navio rebelde comandado pelo tenente comissionado Seroa da Mota, acompanhado do comerciante Antônio de Araújo Costa e do vigário padre Pereira. Em terra ficavam como reféns os emissários de Arquimedes Lalor. Enquanto se discutiam a bordo, o Baependi navegava para o Paraná da Trindade, entre a ilha deste nome e a costa, para cima de Itaquatiara, a fim de, com o Ingá, atacarem as forças rebeldes. As treze e meia horas deu-se o choque. Foram quatro horas apenas de fogo, de parte a parte, em que atos de heroísmo foram cometidos ao lado de cenas burlescas. A ação mais enérgica foi a do Ingá, manobrando em cima do costado do Jaguaribe,
partindo-o ao meio. Vendo-se perdidos, os tripulantes a força rebelde hastearam bandeira branca, enquanto o navio adernava e ia ao fundo lentamente, arrastado pela corrente. Para terminar, o Andirá foi acossado pelos canhões do Baependi, ficando também partido ao meio e afundado. No meio daquelas canas de desespero e do da artilharia e das explosões de granadas e rascar de metralhadoras, o espírito de humanidade não deixou de fazer-se presente de parte dos chefes legais. Os náufragos foram recolhidos na medida do possível. Houve mortos e feridos. Salvaram-se a nado Arquimedes Lalor, Demócrito Noronha, advogado, Dr. Celestino Peixoto, médico mantido a bordo por pressão dos rebeldes. Morreu o sargento Sotero Pereira. Da parte dos legais ficaram feridos vários, inclusive o comandante Lemos do Andirá. Morreu Severino, que havia sido corneteiro da Polícia Militar e no momento era chofer, parece-me que da Comissão de Limites ou da mesma Polícia. Morreu combatendo na ponte de comando. Das notícias dadas pelos jornais de Manaus, uma há que constitui a parte mais cômica daquele episódio: o despenseiro do navio Andirá salvou-se agarrado a um leitão, isto é, foi salvo agarrado ao leitão que tencionava sangrar, quando o navio começou a afundar. Chamava-se esse herói Inácio Garcia. Depois de terminada a revolução, e de tudo estar em paz, os jornais de 26 de setembro, estampam um estranho telegrama originado de certo jornal francês (só podia ser francês) em que se relatava a batalha naval de Itaquatiara do modo mais picaresco possível: A esquadra brasileira sob o comando do presidente Vargas, bate no Oceano Atlântico, a frota revolucionária do almirante Itaquatiara.
E assim findou aquele trágico episódio da história amazonense.