Manaus, 29 de novembro de 2023

Um band-aid na alma

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 * Lya Luft

Em cada virada de ano somos sacudidos por sentimentos positivos e negativos quanto a essas festas que para muitos são tormento. (…) Para alguns é tempo de melancolia: choramos os que morreram, os que nos traíram, os que foram embora, os desejos frustrados, os sonhos perdidos, a fortuna dissipada, o emprego ruim, o salário pior ainda, a família pouco amorosa, a situação do país, do mundo, de tudo. Muitos acorrem aos consultórios de psicólogos e psiquiatras: haja curativo para nossa mágoa e autovitimização. Se formos mais otimistas, encararemos o ano passado, a vida passada, o eu que já fomos, como transições naturais.

Não é preciso encarar a juventude, os primeiros sucessos, o começo de uma relação que já foi encantada, como perda irremediável: tudo continua com a gente. Em lugar de detestar estes dias, podemos inventar e até curtir qualquer celebração que reúna amigos ou família. (…) Não precisa ser com champanhe caro nem presentes que vão nos endividar pelo ano inteiro: basta algum gesto afetuoso verdadeiro, um calor humano que abrande aquelas feridas da alma que sempre temos. Quanto aos projetos, é melhor evitar aquela lista de impossíveis. Importa cuidar mais da relação, ser mais gentil com os pais e menos crítico com os filhos, falar mais com os amigos, sair da redoma da amargura e abrir-se para o outro. (…) O resto são castanhas e espumantes, ou – para quem não bebe – qualquer coisa que faça cócegas no coração. Que faça sorrir. Mesmo para os descrentes, nestes dias algo mágico circula por este mundo nem sempre bonito nem bom. (…)

Também é aconselhável deixar em segundo plano nestas datas a ideia de consertar o país: não vamos reinventar a democracia, a justiça, a igualdade, a honradez e o bem-estar geral. (…) Vale mandar um pensamento, e, se for o caso, uma oração, aos que vivem privações emocionais ou materiais, que trabalham além do humanamente suportável, que perderam o amor de sua vida ou um filho amado, que foram esquecidos e decepcionados, que nesta data não vão escutar nem uma voz cálida ao telefone. E, para as nossas dores pessoais inevitáveis, a gente inventa um metafórico curativo para que o coração se comova, o sorriso se abra, o abraço encerre aqueles a quem dedicamos – e nos dedicam – algum afeto verdadeiro. Repito que valem todos os projetos e afetos, banais ou ousados, mas possíveis. Podem ser pequenos como um Band-Aid: apesar dos nossos defeitos, a boa vontade, a gentileza, a licença que nos daremos para agradecer o dom da vida hão de nos iluminar melhor do que as antigas velas ou as modernas luzinhas. Vamos nos permitir, sobretudo, a alegria perdida no cansaço de tanta correria. Ela ainda existe: sabendo procurar, a gente a encontra.

*Escritora. Colunista da Revista Veja. Artigo na Edição nº  2354, de 01/01/2014.

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