O dramaturgo Samuel Becket – sempre é válida a insistência em revisitar sua obra – um dos autores célebres do Teatro do Absurdo, escreveu, ainda sob os escombros da 2ª Guerra, em 1949, a peça “Esperando Godot”. O cenário é simples como a vida: uma estrada, uma árvore, à noite, a espera passiva de Estragon e Vladimir por um sujeito de nome Godot. Nada é esclarecido a respeito de quem seria Godot ou o que eles desejam dele. Quem é o Godot do Bioeconomia na Amazônia? Becket nos sugere Pozzo e Lucky e este carrega uma pesada mala que não larga um só instante. No segundo ato, o cenário é o mesmo, Estragon e Vladimir seguem esperando enquanto Pozzo e Lucky reaparecem. Pozzo está cego e Lucky surdo. Eles vão embora, e em seguida, um garoto reaparece anunciando novamente: “Godot não virá, talvez amanhã.” O diálogo final, que encerra o ato e a peça é o seguinte: Vladimir: “Então, devemos partir?” Estragon: “Sim, vamos!”. E eles não se movem. O que tem a ver essa invocação com a adoção da Bioeconomia na Amazônia?
Os fatos falam por si
Revisitar Samuel Becket é destacar sua obra mais famosa, Esperando Godot, para repensar as relações absurdas do país com o desenvolvimento sustentável da Amazônia, à luz de debates e da apologia à economia desta região. Todos os últimos governos e regimes, desde Getúlio Vargas, são unânimes em promover o discurso da valorização da Amazônia. Entretanto, em nenhum deles pode ser encontrado um projeto coerente e condizente com a magnitude de nossas potencialidades naturais. Reconhecemos que, desde a celebração do cinquentenário do programa Zona Franca de Manaus, o debate começou a ficar mais acalorado, mas não menos estéril. “A ZFM precisa encontrar sua vocação biológica”, dizem seus tele-gestores, empenhados em liquidar nosso acertado programa de desenvolvimento regional. Entretanto, entra vazante e sai enchente e os pilares dessa mudança no rumo de nossa diversificação econômica não aparecem. Nossas várzeas fecundas nunca foram aproveitadas em favor de nossa gente como árabes e judeus fizeram com o Nilo. O resultado disso é a movimentação tímida, ou pífia, do poder público para transformar promessas em investimentos para destravar iniciativas de bionegócios que façam eclodir a mais eloquente resposta para este país dominado por traficantes e militantes da demagogia extremista.
O Centro de Bioteconologia da Amazônia – CBA
De boa vontade…
Nada acrescenta colocar em questão a boa vontade dos gestores públicos, estaduais ou federais. Eles são engrenagens inconscientes de uma rotina burocrática eminentemente estéril. Entretanto, não temos como não estar de pleno acordo com o Acordo de Paris, onde o Brasil se comprometeu a reflorestar 12 milhões/hectares. Ora, suponhamos que o CBA estivesse produzindo desde 2020 1 milhão de clones de castanheiras por ano, poderíamos em 2030, atender o compromisso assumido e, de quebra, transformar a Amazônia no maior celeiro de selênio, proteína vegetal, taninos, polifenóis, energia da biomassa, tanoaria, etc., etc., tudo o que a castanheira pode oferecer para gerar tanta riqueza e empregos como as commodities do Centro-Oeste. Infelizmente o CBA não existe juridicamente. Depende do CNPJ da Suframa para fazer de contas que pode estabelecer relações de mercado que sua natureza exige. A promessa de emissão de seu CNPJ sai hoje, sai amanhã, sairá um dia? São 20 anos de espera. Duas décadas que atestam o fracasso dessa telegovernança insana que descreve a relação irresponsável da União Federal com sua floresta.
A Ipeca e o Curauá
Temos no CBA mentes brilhantes e laboratórios subaproveitados, por conta desse faz que vai, alguns com risco de sucateamento iminente, outros considerados verdadeiras joias raras para a Amazônia afirmar sua vocação econômica e ecológica na direção da Hileia. Um exemplo deles é o laboratório de cultura de tecidos e de biotecnologia vegetal, há 14 anos de paciência e insistência de uma cientista, a doutora Simone Silva, autoridade em propagação genética e biotecnologia de tecidos vegetais. Cabe ilustrar dois exemplos de germoplasma amazônico domesticado: a Ipeca e o Curauá. Este é uma fibra capaz de substituir a fibra de vidro de celulares e veículos de duas rodas produzidos em Manaus. Aquele, a Ipecacuanha, uma bromeliacea que os chineses utilizam há décadas para produzir fitoterápicos para combate do HIV e da tuberculose, são exportados no formato Brazilian way para a Ásia, porque o Marco Regulatório do país ainda não concluiu a viabilidade da economia da biodiversidade vegetal da Hileia.
Somos todos Vladimir e Estragon?
O cientista Adrian Pohlit, um dos mais profícuos pesquisadores em anti-maláricos do INPA, nascido na Pensilvânia e formado no Vale do Silício, desembarcou por aqui há mais de três décadas, dirigiu o CBA há seis anos com a ideia fixa por atender as demandas das empresas locais e nacionais interessadas no aproveitamento de espécies regionais, para estudo/testagem/protocolos adequados ao mercado. No caso da castanheira, a Bertholethia excelsa, a castanha-do-Pará, ou do Brasil, objeto de Pesquisas no CBA, a lista de ativos comerciais é imensa. Faria a felicidade geral da Indústria dermocosmética e nutracêutica a começar por seus resíduos, coletados na Fazenda Aruanã. Ensaiava-se ali a ponte poderosa entre pesquisa, desenvolvimento e mercado. O jogo político e a telegovernança federal tiveram outro encaminhamento. Curioso é recordar que a castanha daquela Fazenda é de reflorestamento. Um projeto que mobilizou INPA, Embrapa e muita determinação em substituir a pecuária – desenhada no projeto original – pelo desafio de domesticação dessa preciosa espécie. A façanha é da família Vergueiro e o resultado é a criação de um verdadeiro parque tecnológico de produtos sustentáveis, que bem poderia ser replicado em vários outros espaços amazônicos, já degradados por uma pecuária que representa a opção mais pobre e destrutiva do valioso banco de germoplasma florestal onde moram as saídas de uma era de prosperidade sustentável para o Brasil. Ou seguiremos, qual Vladimir e Estragon, repetindo o vamos nessa no modo marasmo do imobilismo milenar?