Manaus, 1 de dezembro de 2023

Crônicas do cotidiano: Conversa de elevador e a morte do Coronel de Barranco.

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Não se espantem, parece um conto de realismo fantástico, uma mistura do ontem com o fanatismo estonteante dos dias de hoje, coisa que não é estranha. A cena inicial se passa dentro do elevador do prédio. A porta se abre e um conhecido um pouco mais novo que eu, que pensa sempre que é mais velho, portanto, com mais histórias para contar e o direito de falar coisas de seu tempo como suas verdades; para mim, nem sempre verdadeiras, porque as vivi também, com estes olhos que a terra há de comer. Ele continua o patriota de plantão e sem querer dar-lhe um rótulo, seria um conservador extremado, para não dizer o reacionário de sempre. Da minha parte, não posso avaliar-me, seria pretensão demasiada. Vivenciei muita coisa, atravessei o fundo de uma agulha como um camelo, cheguei aqui e não foi no céu, mas nesse mundo cão em que vivemos. Ao ver-me, com a falsa alegria de sempre, foi logo perguntando: “você viu na TV a reportagem sobre a morte dos médicos? Chegamos ao absurdo com esse governo de comunistas que contemporiza com bandidos! Vai ficar pior! Tem muita gente querendo deixar o país. Queria ver essa gente fazendo isso na época da Ditadura. Era pena de morte na certa! Só vamos ter paz depois de uma Guerra Civil para acabar com essa esquerda canalha, com a corrupção e com os bandidos; continuo defendendo isso, há mais de trinta anos”! O elevador já chegava ao térreo e só deu tempo de dizer a ele: “será que depois disso estaríamos aqui, vivos!?” A conversa não saiu da minha cabeça. Quantos, nesse país, pensam da mesma forma que o meu conhecido. E, se pensam assim, têm muita chance de serem herdeiros de sangue ou pensamento de gente ruim que ajudou a construir o mandonismo violento que prospera, desde há muito. Foi aí que me lembrei do escândalo da morte de um Coronel de Barranco, que conheci ainda garoto. Lembro dele sentado na cadeira de balanço à porta do Barracão, ainda mandão e perverso. Muito doente, veio para a Capital e não conseguia morrer, porque os espíritos dos que ele fez sofrer o rodeavam e impediam o seu descanso eterno, uma espécie de vingança espiritual muito bizarra.

Para os que não sabem, aqui na Amazônia, Coronel de Barranco era o epíteto dado aos Coronéis da Guarda Nacional, na República Velha. Eram os substitutos dos barões do Império, donos de terras, latifundiários, que juraram defender a República e seus governos, autoritários ou não. Aqui, eram os donos dos seringais, de vastidões de terras e senhores da vida e da morte dos que viviam nas calhas dos rios dos quais se diziam donos. A história não registra, até agora, a existência de um Coronel de Barranco “bonzinho”. Era da natureza do titular desta distinção a impetuosidade, o sentimento de superioridade e até de desprezo aos subalternos e às leis, quando contrariado. A história desses “ilustres” é cheia de crueldades, parte até do folclore político da Região.

O episódio ocorre no final dos anos 60 do século passado, quando apesar de vitorioso nas suas articulações de apoio à Ditadura, por convicção e por vingança, o velho Coronel estava acabado, doente e enfraquecido pela ação do Governo do Estado, seu adversário anterior ao Golpe, que titulou terras em seus domínios, fazendo um ensaio de Reforma Agrária. Foram três dias de sofrimento intenso, desenganado pelos médicos e uma gritaria louca, que chamava a atenção dos transeuntes em frente ao palacete onde residia. Não aguentando mais, a família chamou um padre de sua confiança, talvez o último exorcista existente em Manaus, e, depois de algumas horas de trabalho intenso, o sacerdote começou a tomar a confissão do pecador: aos berros, gritava os seus pecados. Muitas pessoas acorreram para a frente do palacete e ouviam as barbaridades cometidas pelo mesmo: nomes das pessoas a quem mandou matar, os estupros por ele cometidos, os filhos bastardos abandonados no caminho, surras mandadas como castigo para famílias inteiras que ousaram vender os produtos de seu trabalho em terras que ele dizia serem dele, as fraudes cometidas em eleições a bico de pena e o assassinato de adversários políticos. Os gritos foram diminuindo…diminuindo…diminuindo! O padre deu o sacramento do perdão, a extrema unção e, às quatro horas da tarde, em ponto, o Coronel tomava um outro caminho, da salvação ou não!

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