Manaus, 1 de dezembro de 2023

Crônicas do cotidiano: “Todo ato educativo é um ato político”

© Fernando Frazão - Agência Brasil

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É bonito, além de poético e necessário, sustentar esse aforismo que traz Paulo Freire para o centro do debate sobre a educação no Brasil e sobre o sistema educacional brasileiro. Helena Bomeny, num opúsculo editado pela Jorge Zahar Editor, em 2001, intitulado “Os intelectuais da Educação”, passa em revista os grandes vultos da educação brasileira a começar por Anísio Teixeira, passando por Gustavo Capanema, Darcy Ribeiro e, por último, Paulo Freire. Com bem lembram os relatos do século passado, a tônica é a descontinuidade e, em alguns momentos, um profundo retrocesso a provar que a ignorância do povo parece ser um dos objetivos da República, por conta dos interesses políticos. Começamos o século XX com 76,8% de analfabetos e chegamos ao seu final com 21,7%, conforme dados do IBGE, de 1996. A autora citada nos lembra da indiferença do poder público na República Velha por avançar na Educação Básica. E digo eu: era isto que lhe garantia o analfabetismo, que reduzia o número de habilitados ao direito do voto; o voto de cabresto nos currais eleitorais; e o eficiente voto “a bico de pena”, quando letrados votavam pelos que não sabiam assinar o nome nas listas eleitorais. Vale lembrar como um dos retrocessos desejado recentemente foi “voto no papel”, que eliminaria a urna eletrônica e nos levaria de volta aos anos 20 do século passado, facilitando fraudes, aumentando custos financeiros das eleições e outros vícios.

O que Bomeny chama de “Marcha da Nação” conta uma história que vai de uma sociedade de senhores e escravos, passa por uma sociedade livre, “com homens despreparados”, que se encalacra ainda mais na estúpida visão racista de substituir a mão de obra escrava recém-liberta por imigrantes analfabetos europeus, para cumprir os desígnios do “embranquecimento do povo”: “mãe preta, filho pardo e netos quase brancos”, uma seleção genética de cunho político-ideológico, uma vez mais desviando-se dos compromissos com a educação do povo e privilegiando os interesses das elites. Os europeus reduziram o seu analfabetismo exportando imigrantes analfabetos e nós, agradecidos, aceitamos o “processo eugênico” que inauguraram com tal esperteza. Como a famosa lei de Murphy, tinha tudo para não dar certo. O povo negro continuou analfabeto, o tal embranquecimento não foi o esperado, o número de analfabetos aumentou e a escola pública elitizou-se, excluindo a larga população negra brasileira. Uma maldade perfeita, cujas consequências deságuam em nossos dias. As lutas identitárias, em parte, são espelho de tudo isso, como promissórias assinadas por transgressores políticos de antanho, privilegiando uma sociedade dividida, atravessada pela desigualdade e pela injustiça, facilitando, assim, o processo de dominação. Perdemos o tempo de construção de uma sociedade de classes, capaz de unir-se em torno de interesses comuns daqueles que vendem sua força de trabalho, seja física e/ou intelectual, sem as diferenças identitárias ou idiossincráticas. Abraçamos as teorias e práticas do “Capital Humano”, uma invenção refinada do capitalismo concorrencial, fundado em princípios de meritocracia individual dos trabalhadores, com nível educacional adequado, formação técnica, inteligência emocional, experiências, habilidades, comportamentos desejáveis e outras competências sociais. E quem fica de fora? Os deserdados de sempre, os mais pobres, os mais negros, os portadores de comportamentos estigmatizados na vida social e no mundo do trabalho. Assim, por desprezo para o com os privados de acesso à educação, hoje, não temos condições de enfrentar as crises e as estratégias do capitalismo, sobretudo neste momento de desmonte pelo qual passam essas estratégias, dando lugar a outras sob a égide do capitalismo financeiro mundial: abolição das formas tradicionais de trabalho, precarização, ab-rogação de direitos trabalhistas e o triunfo do empreendedorismo como miragem ou conquista dos mais espertos.

Considerando que educar é um ato político, não é mais possível adiar a discussão profunda sobre a educação no Brasil. Essa discussão deve correr pari passu à discussão do modelo econômico e dos espaços no mundo do trabalho e da vida para os que estão na Escola hoje e serão, amanhã, a parte maior de nossa sociedade.

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