*Roberto Pompeu de Toledo
Tudo na ‘reforma política’ de Eduardo Cunha, distante dos clamores por mais democracia e melhor governança quanto próximo da disfuncionalidade e dos trambiques do sistema.
O deputado catarinense João Rodrigues, flagrado assistindo a pornografia no celular enquanto se discutia a reforma política na Câmara, pode ser visto como emblemático do interesse de boa parte de seus pares pelas instituições do país. Mas também pode ser visto como emblemático de uma turma que não tinha com que se preocupar. Sabia que, sob a batuta de Eduardo Cunha, não havia como sair reforma que viesse a dificultar a vida dos políticos.
Não saiu. Todas as votações até agora, rigorosamente todas, foram no interesse da “classe”. Aprovou-se inscrever na Constituição que são permitidas doações de empresas aos partidos (deve ser o único caso no mundo em que a tal disposição se dá a nobreza de preceito constitucional). Revogou-se a reeleição, para alívio dos que se cansam de mofar na fila de espera dos cargos executivos. Manteve-se a permissão de coligações para eleições proporcionais. E aprovou-se, com o nome de “cláusula de barreira”, que basta o partido eleger um único deputado ou senador para ter acesso ao fundo partidário e à propaganda no rádio e na TV.
Tudo perfeito; tudo tão distante dos clamores por mais democracia e melhor governança quanto próximo da disfuncionalidade e dos trambiques do sistema atual. A manutenção das coligações em eleições proporcionais significa que o eleitor vota num candidato de direita e corre o risco de eleger um de esquerda, ou vice-versa. Uma “cláusula de barreira” com exigência tão baixa permite que todas as pequenas legendas hoje representadas no Congresso continuem a usufruir das atuais vantagens. Juntas, as duas medidas mantêm as tenebrosas transações em torno de minutos nos horários de propaganda eleitoral.
O único resultado positivo foi a rejeição do chamado ‘distritão’ nas eleições para deputado – invenção do vice Michel Temer, endossada por Cunha, pela qual se substituiria o voto proporcional pelo majoritário, mas sem a divisão dos estados em pequenos distritos, como manda a boa regra dos países avançados. Pena que junto com o distritão tenham sido rejeitadas as demais opções ao cansado e confuso sistema atual – mas esse é um ponto em que não dava mesmo para esperar o fim de um impasse que vem desde a redemocratização. Ao modelo em princípio atraente do voto distrital falta definir a crucial questão sobre quem vai desenhar os distritos, com que autonomia e com que autoridade de resistir às pressões, para se tomar convincente.
O fim da reeleição é inconveniente a esta altura por dois motivos. Primeiro, porque o instituto ainda não foi devidamente testado. Se há abusos do cargo para fins eleitoreiros, melhor seria focar nos abusos do que no instituto em si. Segundo, porque desencadeia a questão da duração dos mandatos, com nefastos desdobramentos. Mandato de quatro anos para cargo executivo, sem reeleição, considera-se pouco. Esticar para seis? E muito. Lembrai-vos de João Figueiredo; nem ele aguentava o fim de seus seis anos, e marcava na madeira da cocheira do Torto (era um presidente que andava a cavalo, não de bicicleta) os dias de mandato que ia vencendo. Cinco? É número ímpar, que desconecta as eleições de presidente, governador e prefeito das de deputados e vereadores.
Mas… E se esticarmos os mandatos de deputado e vereador para cinco anos? E, já que estamos com a mão na massa, e se juntarmos todas as eleições numa só, a cada cinco anos, livrando-nos da trabalheira de ir ao eleitor a cada dois? É isso mesmo que a Câmara votará, provavelmente já na próxima semana. Só não votou ainda porque não se sabia o que fazer com o mandato de senador, atualmente de oito anos. Vencido esse impasse, a aprovação da unificação de todas as eleições num único dia trará aos brasileiros as seguintes consequências: (1) serão chamados à urna num dia e nos próximos cinco anos estarão condenados ao silêncio; (2) terão de acompanhar uma mesma campanha para presidente, senador, deputado federal, governador, deputado estadual, prefeito e vereador, sopesando a um tempo questões referentes ao país, ao estado e ao município, e em seguida encarar a tarefa de pinçar o preferido em meio a uma profusão de listas e uma algaravia de milhares de candidatos.
Há muito se espera uma reforma que venha a melhorar nosso sistema político. A “reforma” de Eduardo Cunha está conseguindo piorá-lo. Resta-nos a esperança de que, tal qual o FBI contra a Fita, o Senado venha em nosso socorro. O retrospecto indica que a Casa não é muito disso, mas vamos em frente – falta a votação do Senado, e até lá as aberrações da Câmara terão se evidenciado suficientemente para exigir uma ação redentora. Vamos lá, senadores. Sejam mais Loretta Lynch, menos Sepp Blatter.