Manaus, 28 de novembro de 2023

A Cidade de Manaus – Sua história e seus motins políticos

Compartilhe nas redes:

*Bertino de Miranda

XI

Segunda Invasão da Capital. – Eduardo Angelim. – Jorge Rodrigues se estabelece na Ilha Tatuóca.

O Marechal desembarca apoiado no braço do Com- mandante da corveta portuguesa Elisa. E’ o único que pode, em caso extremo, garantir a vida ao Delegado Imperial. Isto, à primeira vista, não se concebe bem, mas temos sempre de admitir a veracidade. Diversas cartas posteriores de Jorge Rodrigues confirmam que essa intervenção amistosa lhe fôra util. Mais tarde, quando ele tiver de justificar a sua conduta nos desastres da segunda invasão, dirá, devolvendo-lhe um ofício para assignar, que estima muitíssimo o seu testemunho nos nove dias de vigorosa defesa aos ataques dos rebeldes.

Na versão do Chefe da Flotilha Taylor o desembarque realiza-se sob a proteção de dezesseis escaleres com tropa de terra e marinhagem em duas divisões (460 homens). Foi rápido e todos prontos a reagir. Felizmente nada foi necessário, diz Taylor, pois parece um sonho o que aconteceu, estando nós, agora, senhores de todos os pontos. (Motins cit., V. 22). A alegria volta a todos os rostos; as lojas acham-se abertas, continua, e as famílias se reúnem outra vez em suas casas» (ibid.).

Na do Marechal ao Ministro da Guerra o desembarque foi a 25 de junho e a posse a 29. Francisco Vinagre, o segundo Presidente intruso, seguia a seu lado. Não se disparou um tiro; com tudo, v. excl. não se deve regozijar de que tudo esteja tranquilo e não sejam precisos 600 homens, uma vez que se quer tranquilizar a Provincia (ibid. 13). Sem amnistia os Cabanos relutam entregar as armas. Talvez pareça em mim demasiada moderação insiste ainda – mas não posso ser mais ativo. Um homem que eu perca deixa-me falta sensível; não sei onde ir buscar outro. Na viagem do Rio ao Pará consumira 60 dias. Sua entrada na Baia de S. Antônio causou admiração mesmo aos estrangeiros.

A nova revolta de Vinagre alastrou-se com maior intensidade pelo interior. Todos andam foragidos. Cametá prometera um auxílio de gente; podiam vir 600 homens, diziam daí. Porém até aquele momento o Marechal não vira nenhum. «Ainda não viaccrescenta com certa malicia irônica – um só até hoje (ibid. 15). Ângelo Corrêa também lhe escreve e informa que no Tocantins todos alegam direitos e ninguém reconhece deveres. Conclui, solicitando ao Ministro a remessa de 250 armas. «Das 400 que trouxe – esclarece com amargura só nos resta 50. Ha uma esquivança formal em auxiliar o governo. Apenas 37 jovens alternam todos os dias espontaneamente as rondas noturnas á volta e nos vestíbulos de Palacio. «Os bons missionários advertem em tom melancólico foram a causa de tudo isso, com as doutrinas que espalharam. Alguns já pagaram; outros, porém, gozam tranquilos os frutos de seus trabalhos. Ha entre eles malvados que até sentem prazer em ver a desordem. (ibid. 15). Dessas alusões, algumas parecem referir-se ao Conego Baptista Campos e a Felix Malcher. Dos vivos, quem usufrui no Sul um bem-estar invejável é Machado de Oliveira. Historiador, internacionalista e na perspectiva de pertencer ao cenáculo literário do segundo Imperador, viveu largos anos sem que o mais leve remorso lhe conturbe a consciência.

Muitos erros de Jorge Rodrigues se resgatam nobremente lendo-se com calma a sua Exposição. Só o Alto Amazonas está ainda isento de anarquia, diz ele ao Presidente do Maranhão. Era exato. Morto Antônio Vinagre (Francisco Vinagre, o Presidente intruso, estava preso), Eduardo Angelim chama a si a direção suprema dos rebeldes. Seu primeiro manifesto é uma objurgatória virulenta. Monstro, traidor, déspota, são as palavras menos cruas que ele assaca ao Presidente. Ingratos estrangeiros! querem provocar o nosso brio, fazendo a polícia da cidade e governando a nossa terra. Essa injuria atinge os batalhões de linha, compostos sobretudo de alemães, mercenários que Pedro I engajara, ao alvorecer o Império, e que se bandeiam depois com os vencedores do 7 de abril.

O socorro militar de Pernambuco que Jorge Rodrigues solicitara ainda da Bahia falhou de tudo. Desfez-se diante de algumas ponderações do Vice-Presidente Camargo. A Esquadrilha não pôde fornecer nenhum contingente. Tenta por isso proclamar á Guarda Nacional e aos Moradores, mas é inútil. Tenta atrair os rebeldes com palavras persuasivas. Homens iludidos que trilham a senda do crime, debaixo do estandarte da morte, do massacre e das ruinas, refleti um pouco, lembrai-vos dos vossos deveres. É um outro apelo igualmente inútil.

Vimos os seus receios, a sua quase certeza de que não poderá resistir só sem o apoio da Regência e das outras Províncias do Norte. Acusam-no de não ter sabido se aparelhar em tempo a uma resistência que ele sabia mais cedo ou mais tarde inevitável. A censura não diz, entretanto, como podia ele reunir os elementos que lhe escapam sempre das mãos ou não chegam nunca. Outros afirmam que em Palacio não se tomava a sério a gravidade do momento. Ria-se, folgava-se; os militares faziam corte ás senhoras. Todas as noites as salas iluminavam para os saraus dançantes a que o Marechal presidia com a sua senilidade de valetudinário. (História Abreviada das Revoltas do Pará cit.) Já os Cabanos haviam tomado as posições mais estratégicas da Cidade e em Palacio só se falava em cousas fúteis (ibid.)

Isto em parte afigura-se infundado. E’ mais razoável admitir que não se tivesse tomado tanto a raiz um ataque geral. Supõe Jorge Rodrigues (tão iludido andava ele por todos!) que os pequenos contingentes, sob o comando do filho, que morreu, aliás, de modo heroico, dispersariam qualquer ajuntamento ilícito. Todavia, é fora de dúvida que previu invectivas futuras á sua honra militar e tratou de se documentar. A nosso ver a única acusação grave é a do Bispo Romualdo Coelho, posto que um tanto velada. V. exc., abandonando a capital, lançou uma boa porção deste rebanho na mais profunda consternação. Dizia-se que a bordo da Esquadrilha estava em reféns a família de Angelim. O Bispo declara que se projetavam trocá-la por qualquer concessão ou ajuste, seria bom sossegar logo as famílias que ficaram em terra á mercê dos vencedores. Aliás, pondera Romualdo, salvando-se v. exc. só a si próprio, sacrifica uma multidão inocente… (Motins cit., V. 168).

Os nove dias de assédio foi de fogo intenso. Os Legais pouco a pouco vão perdendo terreno e desertando vergonhosamente de suas melhores posições. Como se disse, morto Antônio Vinagre com o crânio varado por uma bala, Angelim a frente dos Cabanos avança de peito descoberto. Para eletrizar mais, seu trajo recorda uma preocupação da época; um largo turbante de gentio cobre-lhe a cabeça, significando, como então era moda, a volta ao indianismo puro; traz os pés descalços, uma camisa de pano tingido e calças curtas (Hist. Abrev. cit.) Agora não se trata de guerrilhar fazendo dos quintais e do mato parapeito inaccessível ás balas inimigas. É preciso tomar o Trem de Guerra, o reduto inexpugnável da Legalidade!

Os Cabanos recuam e avançam. Tornam a avançar e recuar doidamente, sem descanso e fraqueza física. Os que morrem são imediatamente substituídos por outros. Já se começa a pisar sobre montões de cadáveres. Este quadro, apesar de horrível, resgata-os da pecha de traiçoeiros. Angelim, colocado sempre no lugar mais exposto, não cessa de arengar. «Por que não seguem esses déspotas e vis tiranos o exemplo dos chefes rebeldes que se acham á frente dos seus companheiros? É porque são covardes. Paraenses, seja o vosso brado vencer ou morrer!» (Motins cit. 104-05).

O Marechal vê-se quase só. A defensiva tem de ser feita com a marinhagem dos navios estrangeiros, um dos refúgios da população inerme. Os navios brasileiros carecem de manobrar sem obstáculos, e na hipótese, que se realiza, de transferir para eles a sede do governo legal, é preciso pessoal bastante para resguardá-los de qualquer investida. De feito, o Marechal abandona a Cidade de madrugada (23 de agosto). Os navios levantam ferro e vão ancorar em frente a Tatuóca. – «A mim tinha o destino reservado a sorte, escreve á Regência e já a bordo da corveta capitania, de presenciar a desgraça desta Provincia depois d’uma vida arriscada e laboriosa de aturadas campanhas». – E’ o seu último adeus à Cidade que os seus íntimos queriam que ele abandonasse disfarçado em roupas de mulher. Quem mais insistia nesse disfarce humilhante era Taylor.

*Bertino de Miranda (1864-1919). Jornalista e historiador paraense. No final do século XIX para início do século XX participou ativamente da vida social, política e cultural do Amazonas. O livro de sua autoria, que em partes levamos ao conhecimento do nosso público ledor, é um importante e esclarecedor documento sobre a História amazonense.

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques